Dirijo-me para Myanmar (Birmânia) ciente de estar a entrar num país dirigido por uma abominável junta militar, mas com um povo afabilíssimo. Páro em Kalaw, onde me embrenho nas montanhas envolventes e pernoito numa família de etnia Dhanu. E sigo depois para o Lago Inle, onde observo a excentricidade piscatória daqueles que ali remam com as pernas.
Estava prestes a entrar num país onde a liberdade é ainda uma miragem. Uma junta militar execrável dirige, desde 1962, os destinos de Myanmar com implacável mão de ferro para com os oponentes ao regime. Detenções arbitrárias de dissidentes são parte do quotidiano. Para o cidadão comum, falar sobre política é um jogo arriscado. O medo paira nas ruas das cidades. Assim sendo, seria ético visitar Myanmar?
Aung San Suu Kyi, a carismática líder da Liga Nacional para a Democracia e Prémio Nobel da Paz, tem apelado para que a comunidade internacional boicote as viagens a Myanmar, até que os candidatos eleitos democraticamente em 1990 tenham autorização para formar governo. Além disso, é virtualmente impossível visitar algumas das mais emblemáticas atracções do país sem pagar entradas que vão directamente para os cofres do governo. Visitar Myanmar pode ser visto como um acto de conivência para com o regime. Porquê, então, fazê-lo? Antes de mais, porque o turismo é uma das actividades à qual o comum do cidadão pode ter acesso. Seja conduzindo um trishaw, um táxi ou um barco, seja sendo proprietário de uma mercearia, um restaurante ou uma pequena pousada. O turismo é, pois, uma forma de alimentar financeiramente as gentes locais.
Por outro lado, o governo já mostrou no passado ser sensível às reprimendas internacionais e não é descabido admitir que, na hipótese de os estrangeiros deixarem de entrar no país, as probabilidades de graves atropelos aos direitos humanos aumentem sobremaneira. Além disso, o contacto com forasteiros e a troca bilateral de informações são quase sempre benéficos para quem almeja maiores liberdades. Ciente dos prós e contras, tomei a decisão de embarcar num avião rumo a Yangon, capital de Myanmar.
Não encontrei em Yangon suficientes pontos de interesse para por lá me delongar. À parte a impressionante Shwedagon Paya, o mais sagrado de todos os lugares budistas do país, que visitei deleitado. A luz de final de tarde aquecia os tons dourados omnipresentes no complexo. Monges noviços meditavam em pequenos grupos. Gente simples vagueava pelo edifício, enquanto outros efectuavam pequenas oferendas. Sendo-se ou não budista, Shwedagon é um lugar fabuloso que merece de qualquer viajante um bom par de horas de atenção.
No dia seguinte estava já a caminho de Kalaw, uma pequena povoação localizada a oeste do Lago Inle, este último um dos mais visitados lugares de todo o país. Juntamente com uma companheira nórdica, partimos para as regiões montanhosas envolventes, sob a liderança de J.P. Barua, guia de ascendência indiana, excelente conversador e conhecedor de todos os dialectos falados pelos diversos grupos étnicos da província.
A paisagem era dominada por arrozais em tempo de pós-colheita. Passámos por vários povoados habitados por gentes Pao e Palaung, mas J.P. decidiu que haveríamos de dormir numa aldeia Dhanu. Excelente escolha. A família que nos recebeu era de uma simpatia extrema. Estavam genuinamente felizes por nos ter como hóspedes. Em volta de um muito bem-vindo braseiro, um jantar irrepreensível foi sendo cozinhado pela filha dos donos da casa. A mãe ia preparando crackers de arroz para vender na estação de caminhos-de-ferro, no dia seguinte. Enquanto isso, o pai mostrava, orgulhoso, um casaco polar oferecido um mês antes por um grupo de sete portugueses – “os primeiros portugueses” a lá pernoitarem. J.P., apesar de bastante comunicativo, quase sempre se mostrou evasivo quando o assunto era mais comprometedor. Mesmo perdido nas montanhas, nunca se sabe quem pode estar à escuta.
Segui de Kalaw para o Lago Inle num pequeno autocarro lotado com vários tipos de seres vivos, incluindo um par de estridentes leitões. Mal chegado a Nyaungshwe, povoação próxima do lago, um passeio a bordo de uma canoa desvendou os primeiros segredos. Percorrendo os estreitos canais envolventes, era possível observar o quotidiano nas aldeias cujas casas estavam assentes em estacas, sob a água dos canais. Mais tarde, já de barco a motor, visitei o fascinante mercado de Indein, onde centenas de pessoas de várias minorias étnicas negociavam de tudo um pouco. E, no caminho, os afamados pescadores do Lago Inle labutavam utilizando as pernas para remar as suas embarcações. Uma visão tão estranha quanto bela.
Dias depois, era tempo de mudar de poiso. Enquanto aguardava o autocarro para Mandalay, um militar impecavelmente fardado mandava parar quase todos os camiões de mercadorias e pick-ups de passageiros. Sem qualquer palavra trocada, alguém saía imediatamente da viatura, corria em direcção ao polícia e, com a palma da mão virada para baixo, entregava dinheiro ao oficial. Quando desconfiado, o militar conferia o montante entregue. Nunca o verde de um uniforme me enojou tanto como naquele momento.
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.