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O Lado Esquecido de Angkor Wat, Camboja (VM #22)

Por Filipe Morato Gomes

Angkor Wat: Museu das Minas Terrestres de Aki Ra

Visito os magníficos templos de Angkor, nas proximidades de Siem Reap, Camboja, e fico maravilhado com a beleza invulgar de Ta Prohm. E conheço o senhor Aki Ra, um homem cujo extraordinário trabalho em prol do futuro do seu país não merece, infelizmente, o apoio dos governantes locais.

A maior parte dos viajantes desloca-se ao norte do Camboja com o propósito de conhecer os extraordinários templos de Angkor, localizados nas proximidades de Siem Reap. E Angkor é, de facto, um local magnífico que merece toda a fama que granjeou.

Entrada no templo Ta Prohm, Angkor Wat, Camboja
Entrada no templo Ta Prohm, Angkor Wat

Visitei durante dois dias alguns dos mais significativos exemplares arquitectónicos do complexo que se estende por uma vasta área, desde os magníficos altos-relevos de Bayon e de Banteay Srey, até ao imponente templo de Angkor propriamente dito. E deliciei-me com a estranha beleza de Ta Prohm, onde árvores de enorme porte literalmente abraçam as edificações de pedra – a maior parte em ruínas -, criando um cenário único e inolvidável para quem ali se desloca. Ta Prohm é, aliás, quase sempre apontado como o templo favorito pela maioria dos visitantes. Concordo.

Mas, mesmo ali ao lado, numa pequena estrada de terra batida paralela àquela que leva os turistas de Siem Reap até Angkor, há algo merecedor de tanta ou mais atenção. Algo praticamente desconhecido do comum dos viajantes. Falo da vida de um homem e da nobreza do seu trabalho em prol do país que o viu nascer. Tive a sorte de ser informado da sua existência. Sem hesitações, e mesmo antes de visitar Angkor Wat, aluguei um tuk-tuk e dirigi-me para o Museu das Minas Terrestres de Aki Ra, na esperança de conhecer o próprio Aki Ra, mentor da iniciativa.

Monges no topo do templo principal de Angkor Wat, Camboja
Monges no topo do templo principal de Angkor Wat, Camboja

Aki Ra trabalha como motorista para se sustentar mas, por feliz casualidade, encontrava-se no museu nesse dia. A história da sua vida é algo impressionante. Disse-me não saber ao certo a sua idade, “talvez 32, talvez 35”. Contou que viveu a maior parte da sua vida na selva, entre armas, combatendo, órfão provavelmente desde os cinco anos. “Os meus pais foram assassinados pelos Khmer Vermelhos”, afirmou. Por supostos “crimes” sem a mínima gravidade, descortinei posteriormente. Foi então levado pelos Khmer Vermelhos e forçado a aprender a usar armas, a colocar minas e a abrir caminho por entre campos minados na frente de uma coluna militar Khmer. Lutou mais tarde, também sem opção de escolha, do lado oposto do conflito, pelos exércitos vietnamita e cambojano, até que as Nações Unidas enviaram uma missão de manutenção de paz para o Camboja. É então que, ao serviço da ONU na desminagem do solo cambojano, descobre a sua missão. “O único objectivo da minha vida é tornar este país seguro para o meu povo”, afirmou com convicção.

Hoje em dia, quase todas as semanas desloca-se a diferentes províncias do Camboja e retira, desactiva e inutiliza minas colocadas por qualquer um dos intervenientes no conflito. “Num dia posso retirar 60 minas, usando apenas um pau ou os pés”, diz, com naturalidade. “Os pés?”, interrompo. “Sim, consigo detectá-las facilmente com os pés”, conclui. Nunca sofreu sequer um arranhão. E foi guardando esses engenhos.

Edifício das Nações Unidas em Phnom Penh, capital do Camboja
Aki Ra, o próprio

Decidiu então criar o Museu das Minas Terrestres para chamar a atenção para o grave problema que as minas constituem ainda hoje. Aí exibe exemplares por si desactivados. E muito outro equipamento militar encontrado nos campos. E pinturas da sua autoria ilustrando, com elevado sentido educativo, situações de contacto com minas terrestres e episódios da sua vida na selva. Pequenas histórias supostamente reais. E acolhe ainda, todos os anos, cerca de duas dezenas de crianças mutiladas por uma das inúmeras minas actualmente existentes em solo cambojano. Acolhe-as, dá-lhes abrigo, comida e ainda as leva à escola. Um trabalho notável. Mas nem todos pensam assim.

Aki Ra dedica todo o seu tempo livre à causa da sua vida. Uma causa que deveria ser acarinhada e incentivada por quem lidera o país. Mas descobri durante a conversa que as entidades governamentais locais fazem todos os possíveis para encerrar o museu ou dificultar o seu trabalho. “Dizem que prejudica o turismo”, afirmou Aki Ra, referindo-se aos governantes locais. E a corrupção é um problema demasiado real e palpável. “Querem que eu feche o museu e por isso obrigam-me a pagar-lhes todos os meses para o manter aberto. Se querem apenas sair para beber um copo, pedem-me 50 dólares; se querem ir a um bar com karaoke, tenho que pagar o dobro”. Muito dinheiro numa nação tão pobre como o Camboja. Assim se dirige um país.

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Filipe Morato Gomes

Autor do blog de viagens Alma de Viajante e fundador da ABVP - Associação de Bloggers de Viagem Portugueses, já deu duas voltas ao mundo - uma das quais em família -, fez centenas de viagens independentes e tem, por tudo isso, muita experiência de viagem acumulada. Gosta de pessoas, vinho tinto e açaí.