Chego ao Mato Grosso do Sul, Brasil, sem planos definidos. Acabo por seguir à boleia até Bonito – a auto-denominada capital do ecoturismo brasileiro e porta de entrada no Pantanal -, onde decorrem as actividades do Festival de Inverno da cidade. Divido os dias entre o teatro, a fotografia, o cinema e a música e tenho ainda tempo para fazer snorkelling em rios cristalinos, visitar grutas e passar tardes em fazendas encantadoras. Uma semana em que arte e ecoturismo andam lado a lado.
Cheguei a Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, após uma longa noite a bordo de dois autocarros que me trouxeram desde Puerto Iguazu, no lado argentino das homónimas cataratas. Na viagem, Gabriel e Carlos, dois brasileiros de regresso a casa após um par de meses viajando pela América do Sul, tinham-me avisado. “Cara, esquece Campo Grande, está a decorrer o Festival de Inverno de Bonito. Devias ir para lá imediatamente.”
Tinha outros contactos na cidade e, antes de tomar decisões, liguei. “Vai ter com o Júnior, ele está à tua espera”, disse-me, por telefone, ainda no terminal rodoviário de Campo Grande, uma amiga de longa data moradora na região. Uma corrida de táxi mais tarde, estava à conversa com Júnior na sua agência de viagens. Procurava conselhos sobre o que fazer no Mato Grosso do Sul quando um cliente cruzou a porta de entrada. Chamava-se José Rafael. “Vou para a minha fazenda. Queres carona até Bonito?”, ofereceu-me. Aceitei sem hesitações. Campo Grande ficaria para outra oportunidade.
Depois de uma noite passada em autocarros, percorri de carro a estrada que liga Campo Grande a Bonito. Ao longo dos cerca de 247 quilómetros que separam as duas cidades, rectas enormes, fazendas de criação de gado e algumas pequenas povoações dominam a paisagem. O Pantanal mato-grossense, uma das mais extraordinárias reservas naturais do planeta, fica por ali perto. A região de Bonito, que também pertence a Mato Grosso do Sul – estado que faz fronteira com o Paraguai – fica na parte sul do Pantanal.
A cidade que dá nome à região não tem nada de extraordinário, mas o que faz a sua fama é a água cristalina dos seus rios, a beleza translúcida das cachoeiras, o encanto e mistério das grutas e a diversidade e exuberância da fauna e da flora. Bonito é, de resto, um dos principais destinos de ecoturismo do Brasil. Mais de 70 mil turistas visitam anualmente as principais atracções da região por ano, mas fazem-no de forma ordenada, uma vez que estão interditas explorações por conta própria. Todas as visitas têm hora marcada e tempo controlado. Há sempre um outro grupo de turistas pronto e expectante, aguardando a sua vez.
Praticar snorkelling no Aquário Natural e no Rio da Prata, onde cardumes de piraputangas e alguns dourados faziam companhia aos visitantes durante todo o percurso, é uma das actividades que mais entusiastas atrai. Interessantes são também os almoços nas fazendas que acolhem os visitantes, o Buraco das Araras, onde se avistam bandos daquelas graciosas criaturas, e a famosa Gruta do Lago Azul, talvez a mais emblemática atracção da região. Honra à verdade, não são lugares de causar espanto a viajantes experimentados, mas valem bem uma ou outra tarde de lazer.
Quando cheguei a Bonito, a cidade estava transformada numa espécie de feira hippie. Dezenas de vendedores de colares, pulseiras e demais artefactos decorativos ocupavam os passeios em redor da praça principal. Vinham de vários pontos do país para fazer negócio com a multidão que lá acorreu para participar na sexta edição do Festival de Inverno.
Havia teatro de rua para crianças – que deliraram com o grupo carioca Teatro de Anónimo -, cinema ao ar livre, numa tela enorme montada na Praça da Liberdade, uma exposição de fotografia de razoável qualidade e um concurso de curtas-metragens, cujo tema era a Ecologia, onde pude assistir a um delicioso documentário sobre o “Seu Ico”, amante da natureza, sem estudos mas muita sabedoria. “Meter um tractor no mato é o mesmo que derrubar uma prateleira de farmácia”, dizia Ico, do alto dos seus oitenta anos – pelo menos era essa a idade que aparentava ter -, a propósito da desflorestação da região onde nasceu.
Havia também espectáculos de artistas brasileiros consagrados. Wagner foi o que captou as maiores atenções. A tenda onde estava montado o palco principal encontrava-se repleta de gente que entoava todas as suas músicas. E ainda Fernanda Abreu, Elza Soares e um par de outros nomes. Mas o que mais me chamou a atenção foi um homem simples e quase desconhecido: Pereira da Viola. Vinha sem banda de suporte, acompanhado apenas por uma viola caipira. Ia tocar num espaço “alternativo”, denominação de um pequeno palco ao ar livre onde artistas menos conceituados se apresentavam. Havia algumas dezenas de pessoas a assistir. Pouca gente que, seguramente, não se arrependeu. Porque Pereira da Viola, mineiro de alma e coração, apresentou-se com a sinceridade dos homens simples, falou com a humanidade dos homens pobres e ainda tocou com o talento de um consagrado. A viola caipira parecia chorar e rir ao mesmo tempo.
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.
Comentários sobre “Bonito por natureza”
Mais uma vez o encanto das suas palavras e das suas fotografias são minhas companheiras.
É sempre com grande prazer que leio e releio as suas crónicas e que me alimentam o desejo de largar tudo e partir sem regresso.
Um abraço.
Comentário enviado por Morgana em 29.AGO.2005 – 12:20
Filipe,
Tenho acompanhado e me deliciado semanalmente com suas fotos e crónicas. Aguardei ansiosamente o texto sobre Bonito porque, ainda que indirectamente, me sinto um pouco participante. Gostei imensamente do texto e espero pelas fotos. Se me permite um pequeno ajuste, o Wagner na realidade é Fagner e a Rosa Soares é a Elza Soares. Paula manda beijos. Grande abraço e boa sorte no restante de sua expedição.
Comentário enviado por Eduardo em 29.AGO.2005 – 14:03
Obrigado, não sei como me saiu Rosa em vez de Elza. Já corrigi o texto.
Grande abraço.
Comentário enviado por Filipe Morato Gomes em 29.AGO.2005 – 18:17
Dia 392… acho que vou comemorar isto! 1.074 anos, 13.06 meses, 56 semanas, 9.408 horas, 564.480 minutos. Que belos números. Brindo a isso! Força… ai que já passou mais um minuto.
Comentário enviado por Telmo em 30.AGO.2005 – 16:41
Afinal são 406… ainda melhor! tenho mais uma desculpa para celebrar. 1.11 anos, 13.53 meses, 58 semanas, 9.744 horas, 584.640 minutos. Estes números são muito melhores, mas não me perguntes porquê. E fica descançado, já tenho a data “Terrena” certa no meu computador… glu glu glu… haaaa. À tua!
Comentário enviado por Telmo em 30.AGO.2005 – 18:44
Quando estive na Madeira ouvi durante duas horas (sem pestanejar) um homem como o Pereira da Viola, com as suas estórias do sertão, as suas peças originais, tradicionais, clássicas, flamenco… é espantoso como um homem desenvolve uma paixão assim e dedica toda uma vida a uma causa vista preconceituosamente como menor…
Ele veio para portugal e para a ilha da madeira, precisamente para estudar as origens desse tipo de viola. A possível avó: viola braguesa, a provável mãe viola de arame da Madeira, em tudo igual à viola sertaneja…
Não me lembro do seu nome mas aproveito para deixar a minha homenagem. São pessoas como tu e ele que nos lembram a nós (comuns mortais) de que é possível sonhar e viver os sonhos e viver aventuras e vontades e desejos e ser livre…
Estás no Brasil e nós todos cheios de inveja.
Um abraço my friend.
PS: A digressão no Leste foi bem fixe. Adorei Pula, na Croácia, e Praga.
Comentário enviado por Daniel (Cristo) em 30.AGO.2005 – 19:20
Confesso que é a primeira vez que olho com a atenção merecida para a tua página e que me deleito com as imagens mentais que vou criando à medida que leio as crónicas…autênticos sonhos que, à partida, parecem impossíveis de realizar. A astronomia da tua coragem e o teu desprendimento pelos bens materiais e mesquinhos que nos impedem de seguir os teus passos deixam-me abismada. É impossível terminares essa viagem sem te tornares numa pessoa diferente… Deixo-te o meu louvor por isso…
Comentário enviado por Luísa “Uma” em 01.SET.2005 – 15:08