Uma tarde numa das famosas casas de chá em Chengdu, China. E tocando com um grupo de velhotes reformados melodias improvisadas num parque de Kunming. Quantas vezes os mais simples momentos não são aqueles que perduram eternamente na memória de um viajante?
Sento-me, acompanhado por um par de nórdicas por demais vistosas e outros companheiros de ocasião, numa das famosas casas de chá de Chengdu, província de Sichuan. À nossa volta, dezenas de mesas repletas de gente com ar sereno, conversando e bebendo chá, sob a frescura de uma sombra proporcionada por enormes árvores de aparência centenária. Novos e velhos, maioritariamente chineses, partilhando xícaras de chá de jasmim sem fundo aparente, calma e prolongadamente, durante algum tempo, meia tarde, muito tempo, toda a tarde.
O tempo voa de forma imperceptível nestes espaços ao ar livre. O ambiente é por demais relaxante. E os bules de água a ferver, ininterruptamente disponíveis para reencher as chávenas meio vazias, proporcionam um cerimonial repetido vezes sem conta pelos empregados do estabelecimento. Um fio de água a ferver saltando do bule erguido no ar, caindo, num movimento calculado ao milímetro, bem no centro das pequenas xícaras circulares. Tal como quem enche um copo de sidra na vizinha Espanha, associo, ao presenciar a precisão do movimento. E não apetece fazer muito para além de conversar, observar e usufruir da tranquilidade deste espaço. É o que fazemos. Nem mais.
Assim anoitece, sem se dar por isso. Sorvo o último gole da enésima xícara de chá de jasmim e abalo ao encontro do pulsar da cidade de Chengdu. Um contraste total com o que acabo de vivenciar. Barulho, poluição, demasiada gente. Como na maioria das grandes cidades chinesas. Mas sinto que já me habituei à poluição atmosférica. Respirar é tarefa árdua, as máscaras pululam nas faces dos habitantes locais. Já não me espanto. Acho até normal. Não ver o sol de forma nítida, por cima deste nevoeiro enegrecido que paira constantemente sobre a minha cabeça, é algo que se aceita como inevitável depois de umas semanas na China.
E surpreendo-me, inclusive, quando dias depois, ao chegar a Kunming, mais a sul, vejo um céu medianamente azul por cima dos prédios que marcam o horizonte daquela moderna capital da província de Yunan. Momentânea ilusão, pois a realidade cedo devolve as máscaras às faces dos habitantes. E o mesmo barulho incessante. Numa povoação mais bonita, é certo. É que Kunming é uma cidade bem cuidada, com ruas agradáveis, elegantes espaços verdes e razoável ordenamento urbano. Mas mesmo aqui, respirar sem inalar litros de gazes tóxicos é tarefa praticamente impossível. A não ser afastando-se da cidade. É o que faço.
Refugio-me num parque nos arredores. Lá chegado, descortino o som de diversos instrumentos por entre o chilrear da passarada. E vozes femininas, cantando. Música tradicional. Aproximo-me e sou instantaneamente recebido com enormes sorrisos. Um grupo de uma dezena de velhotes de ar simpático, tocando instrumentos de cordas de construção seguramente artesanal. Convidam-me a sentar. Ouço inebriado os sons que saltam dos instrumentos. E aproveito um intervalo entre músicas para interrogar, curioso:
– “Costumam juntar-se aqui muitas vezes?”
– “Todas as tardes”, respondem em uníssono.
– “Todas?” – exclamo surpreso, não imaginando o mesmo grupo de pessoas juntando-se para tocar as mesmas músicas, dia após dia.
– “Sim. Somos amigos, somos reformados, não temos nada melhor para fazer. E como moramos aqui, não pagamos a entrada no parque. Não conhecemos melhor lugar para nos encontrarmos e tocarmos as nossas músicas”, explicam. “Quer juntar-se a nós?”
E passam-me um instrumento para as mãos. Talvez o olhar me tenha denunciado. Apetece-me tocar, de facto. Na forma, parece-se com um bandolim, embora possua somente dois pares de cordas. Não esperam que saiba o que fazer com aquele arredondado pedaço de madeira e uma palheta artesanal. Mas faço um pequeno brilharete, tamanha a simplicidade da escala de notas do instrumento. A arte de tocar com uma palheta não é novidade para mim. Fitam-me, espantados. Parecem felizes por partilhar este momento comigo. Improviso uma qualquer melodia e o grupo acompanha-me com os seus próprios instrumentos. Eu estou verdadeiramente encantado. Perfeito intercâmbio. Sinto-me por um instante parte deste grupo de velhotes reformados. Unidos pela música, com mútuo respeito e admiração. É por momentos assim que vale a pena palmilhar este mundo…
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.
Olá, chamo-me Cristina e sou de Gaia, vou na 2 quinzena de maio à China, 5 dias em Pequim e 7 noites em Xian, pelo menos está assim por alto planeado, que podes aconselhar por aí perto? Vamos de avião de Pequim a Xian e pensamos em voltar de comboio rápido parando noutras cidades de volta (chegamos a 20 e saímos 3 de junho). Além de que temos de fazer as reservas nos hotéis por causa dos vistos! Obrigado
Olá,
Quando li Chengdu estava à espera de encontrar algo também sobre os santuários do panda gigante… Conhece? Alguma informação que me possa dar?
Obrigadíssimo!
Beijinho,
Carla