Visito a atraente cidade de Chiang Mai antes de abandonar por uns dias a civilização ao encontro da minoria étnica Poe. Mas os trágicos acontecimentos provocados pelo maremoto fazem-me mudar de rumo. Do Laos – onde já me encontrava – sigo imediatamente para Phuket, onde me deparo com cenários paradisíacos transformados em locais de dor. Nenhuma palavra conseguirá fazer justiça ao horror que testemunho.
Depois de Bangkok e de uma curta paragem na histórica povoação de Sukhotai, decidi rumar mais a norte com o intuito de conhecer a tranquila cidade de Chiang Mai e algumas das minorias étnicas que habitam a região. Uma longa jornada sentado num autocarro a precisar de reforma e que, sem grande espanto, acabou por avariar a meio caminho. Mas haveria de mudar radicalmente de planos, em virtude da calamidade que se abateu sobre as regiões mais a sul.
Chiang Mai, propriamente dita, é uma cidade muito atraente. Cosmopolita, sem a agitação de uma grande metrópole como Bangkok. Mas suficientemente pequena para ainda manter o charme daqueles exíguos lugares onde um viajante se sente aconchegado. E, ao domingo à noite, no mercado semanal que na zona histórica tinha lugar, era possível adquirir artefactos provenientes de grupos étnicos das redondezas, vendidos pelos próprios. E observar assim alguns dos seus costumes e tradições. O principal motivo, afinal, que me trouxe até ao norte da Tailândia.
Decidi, pois, abandonar por uns dias a civilização. Encontrei uma genuína agência de ecoturismo e embrenhei-me numa floresta algures entre Chiang Mai e Mai Sariang, já muito próximo da fronteira com Myanmar. Chegámos a uma aldeia da minoria étnica Poe, um subgrupo da tribo mais populosa da Tailândia – os Karen – e fomos recebidos com alguma desconfiança. Ou talvez uma cautelosa distância que será suposto manterem perante forasteiros. Mas, uma vez quebrado o gelo, tudo foi diferente. Nunca saberei se foi da confraternização à volta do calor de um braseiro, de uma garrafa de vinho de arroz que ali se esvaziou ou apenas o normal período de tempo que pessoas tão diferentes necessitam para se adaptarem à presença de outrem. E assim comecei a saber mais sobre os Poe.
Com a ajuda de um guia-intérprete, descobri que a aldeia vive sem líderes. Todos são chamados a intervir na tomada de decisões. Existe apenas um ou outro elemento masculino que, por saber ler e escrever, é incumbido pela comunidade de tratar de questões burocráticas na capital da província. As mulheres são responsáveis pela maioria das tarefas diárias, incluindo trabalhos pesados como acartar madeira e água. E cozinhar, lavar, limpar e olhar pela descendência. Os homens, esses, têm aparentemente como principal missão, a construção e manutenção da casa da família. À parte isso, pouco mais têm que fazer. A não ser fumar, conversar e beber.
Estando na aldeia, apercebi-me que os Poe possuem valores, costumes e tradições muito próprios. Como, aliás, a maior parte das minorias étnicas da Tailândia. Mas tudo pode, rapidamente, ir mudando. Sei que não fui o primeiro estrangeiro que dormiu ao relento nos alpendres de uma das casas da aldeia. Nem terei sido, seguramente, o último. E a linha que separa os aspectos benéficos dos nocivos, nesta convivência, é demasiado ténue. O dinheiro que recebem pela hospedagem dos viajantes tem, como qualquer moeda, dois lados distintos. Se os mais velhos acreditam, por exemplo, que o seu espírito pode ser roubado por uma objectiva a si apontada, já as crianças, com a sua natural curiosidade, adoram posar e ver a sua imagem numa máquina fotográfica digital. E assim, num ápice, se vão alterando as crenças que resistiram incontáveis gerações. Seja como for, tudo isto parece demasiado supérfluo perante o que entretanto sucedeu.
Era suposto seguir do norte da Tailândia para o vizinho Laos, e lá permanecer um bom par de semanas. Mas uma catástrofe abateu-se sobre o sul da Tailândia e outros países da região. Estava em Vang Vieng, Laos, quando soube da gravidade dos acontecimentos. Segui imediatamente para a ilha de Phuket, tentando de alguma forma ser útil ao trabalho da jornalista do PÚBLICO enviada ao local.
Encontrei um cenário tremendo. Nunca os meus olhos tinham visto tamanho horror. A destruição de extensas praias e respectivos hotéis e resorts, reduzidos a nada com a passagem furiosa das águas. O cheiro a morte, nauseabundo, proveniente de corpos que se amontoavam por todo o lado na região de Khao Lak, 100 quilómetros a norte de Phuket. E a dor dos sobreviventes, de olhos cravados no chão, procurando quase sempre em vão um sinal de vida de familiares ou amigos. Alguns terão encontrado. Mas a maior parte procurava já apenas cadáveres, com o olhar encharcado de sofrimento e o coração visivelmente apertado. E não consigo sequer imaginar o que iria na alma daqueles que, por entre cadáveres completamente deformados, alinhados nos jardins de alguns templos feitos morgues, tentavam identificar algum ente querido.
Com o passar das horas, apercebo-me de que a gravidade da situação em Phuket, apesar do grau de destruição, não é comparável com a de outros lugares como Aceh, na Indonésia, ou Galle, no Sri Lanka. E é para o antigo Ceilão que agora me dirijo, sem coordenadas precisas, apenas com a certeza de ir ao encontro do inimaginável.
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.