A Difícil Adaptação Aborígene ao Mundo dos Brancos (VM #44)

Por Filipe Morato Gomes
Viagens: Darwin e outback, Austrália - Volta ao Mundo

Ao aterrar na Austrália, chegara ao primeiro país de cultura ocidentalizada desde o início desta volta ao mundo. Mas havia coisas que não batiam certo. Os povos autóctones do Northern Territory não andavam felizes. Um conflito civilizacional parecia ter lugar nos parques e ruas de Darwin.

Ao aterrar na Austrália, chegara ao primeiro país de cultura ocidentalizada desde o início desta volta ao mundo. As ruas limpas e arranjadas de Darwin, a organização da cidade e a visível qualidade de vida dos seus habitantes eram uma brutal alteração em relação à última paragem, Timor-Leste. Aterrara no chamado primeiro mundo mas, apesar da Austrália se posicionar na vanguarda do desenvolvimento mundial, coisas havia que, visivelmente, não batiam certo.

Térmitas no Parque Nacional de Litchfield, Austrália
Montes construídos por térmitas, Parque Nacional de Litchfield, Austrália

Darwin revelou-se uma cidade bonita e agradável. Sem prédios elevados nem tráfego congestionado. Stress era uma palavra ausente do dicionário local. As pessoas andavam despreocupadamente pelas ruas, como se o ritmo de vida fosse lento e prazenteiro. E utilizavam os parques da cidade, verdes e refrescantes, como pontos privilegiados para salutares actividades físicas. Partilhando o mesmo espaço, alheios a tudo, por entre o verde resplandecente da relva dos parques, seres de aspecto miserável e roupas gastas dormitavam, como que moribundos. A alegria de Darwin passava ao lado daqueles seres humanos.

A tez escura, os lábios grandes e carnudos e as feições diferentes não deixavam margem para qualquer dúvida. Os primeiros homens a povoar o país não andavam felizes. Um conflito civilizacional, surdo e funesto, parecia ter lugar nos parques de Darwin. Como em todos os cantos da cidade. Os aborígenes estavam embriagados, andavam embriagados, viviam embriagados. Como seres expulsos da sua própria terra, sem lugar para onde ir nem lugar para onde voltar. Uma visão muito triste, aquela de um povo indígena com uma cultura milenar riquíssima e que, provavelmente sem alternativas, parecia ir lentamente definhando perante as leis do chamado progresso.

Estima-se que um milhão de autóctones habitasse a Austrália quando os primeiros europeus ali desembarcaram. Ainda hoje, cerca de 30% dos duzentos mil habitantes do Northern Territory – do qual Darwin é a capital – é aborígene. Muitos vivem em zonas delimitadas pelo governo como território indígena, com pouco contacto com o homem dito branco. Outros vivem em parques nacionais explorados conjuntamente por ocidentais e aborígenes, em parcerias que têm funcionado como forma de integração destes no mundo moderno daqueles, preservando no entanto a sua cultura e costumes. E há ainda uns poucos que vivem perfeitamente integrados numa sociedade de consumo. Viria a conhecer uma dessas excepções na povoação de Katherine, dias depois de ter saído de Darwin.

Loja indígena em Katherine, Northern Territory, Austrália
Loja de Glen, um indígena a viver em Katherine, Northern Territory, Austrália

A bordo de um miniautocarro da companhia wayward bus, segui para sul rumo ao coração desértico da Austrália. Uma paragem no Parque Nacional de Litchfield, a um par de horas de Darwin, foi um óptimo início para a longa viagem. Cascatas como a de Florence proporcionaram à dúzia de viajantes a oportunidade de nadar em águas cristalinas e refrescar o corpo. Montes gigantes construídos por laboriosas térmitas impressionavam pela magnitude e orientação quase milimétrica. É espantoso como criaturas tão pequenas constroem edificações tão colossais e engenhosas. Outra espécie de formigas foi alvo de toda a atenção por outras razões. Gastronómicas. Por sugestão do motorista, provei uma formiga verde. Viva. Dizia conter uma grande dose de vitamina C e ser usada pelos povos da região como fornecedor natural dessa substância. O sabor ácido lembrava o de uma lima. Aqui e ali, outros animais fizeram o miniautocarro parar. Uma cobra venenosa atravessando a estrada sem curvas. Dezenas de pequenos cangurus saltitando graciosamente. E emas. Uma oportunidade única de vislumbrar animais completamente selvagens no seu habitat.

Mais para sul, em Mataranka, ao segundo dia de viagem, um banho nocturno nas homónimas águas termais retemperou energias e preparou os viajantes para o resto da jornada. Antes da chegada a Alice Springs, tempo ainda para uma paragem nas Devil Marbles, umas curiosas formações rochosas que pareciam brotar como cogumelos do solo plano e árido envolvente. E de permeio, uma paragem em Katherine, a povoação onde encontrei Glen, um aborígene que provou que nem todas as histórias de integração indígena na sociedade moderna têm um triste final. Entrei na sua loja, que era um misto de cibercafé e venda de artesanato aborígene. “Sou um dos poucos indígenas a ter um negócio próprio em todo o Northern Territory”, afirmou Glen. “E estou a pensar expandir o negócio e abrir mais um par de lojas”, afiançou.

É certo que Glen é uma excepção. Mas, sendo difícil garantir a preservação de comunidades isentas de influências externas num mundo cada vez mais globalizado, é pelo menos um sinal de esperança. Vida longa para os aborígenes australianos!

Livro Alma de ViajanteEsta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.

SUBSCREVER NEWSLETTER

Comentários sobre “A difícil adaptação aborígene ao mundo dos brancos, em Darwin”

Hei Filipe
Por cá as novidades são antigas: corrupção de gente muito bem intencionada que age de boa fé e em prole do interesse público(!?), jornalistas e investigadores mal intencionados e sem fé que os investigam, défices que abalam a fé nos políticos e remetem mais uns quantos portugueses para a pobreza (diariamente) e, para cúmulo, a já adiantada Primavera mostra-se tímida e sem fé. Alguém a devia investigar. Novidade é o Benfica ter ganho a liga, não com fé mas com fezada.

Penso que os ingleses colonizadores e posteriormente cidadãos australianos, nunca terão feito mea culpa, pela ignomínia criminosa a que submeteram o povo autócne, urdindo mil maneiras de os levar à quase extinção (crianças foram separadas das famílias, enviadas para campos de reeducação e exportadas posteriormente, em pleno século XX). O álcool surge quando, a pessoas desenraizadas e afastadas dos seus territórios e formas de vida, é dado um subsídio à laia de compensação, sem proporcionar a real inserção de uma forma digna e sustentável. Há, de facto, excepções a esta realidade, como recentemente no desporto olímpico e, sem dúvida, muitos australianos “brancos” passaram a olhar para a comunidade aborígena de outra forma. Mas é pouco.

Quanto a ti, já vi que estás na Tasmânia, o que deve ser fantástico. Cuidado com o demónio e a sua bocarra rosa.
Vais à Nova Zelândia? É o meu país de estimação.
Um grande abraço e boa estadia onde quer que estejas.

Comentário enviado por Pedro em 23.MAI.2005 – 12:03

Não querendo armar-me em sociólogo, o que acontece na Austrália, acontece na África do Sul, num passado não tão recente nos EUA, num passado mais longínquo com as culturas Maia e Azteca, os Romanos aos Gregos, os Bárbaros aos Romanos, os Árabes aos Bárbaros, os Cristãos aos Árabes… e por aí fora… é histórico, é instintivo, é animalesco e muitas vezes brutal.

Mas a lei do mais forte continua e continuará sempre, talvez de maneiras cada vez mais subtis e mais complexificadas…, mas tudo uma maneira de encobrir essa lei do mais forte, a lei da sobrevivência e da frieza de uma raça e/ou cultura sobrepor-se a outra.

É disto que somos feitos e muito poucos na história da humanidade perceberam que não tinha que ser assim, que éramos todos iguais e vivendo todos juntos só seríamos mais ricos e mais justos…

O nosso mundo global é um mundo em que esse respeito pela diferença parece querer surgir, mas ao mesmo tempo parece-me que cada vez mais somos todos muito iguais, muito ”americanizadamente” iguais…

Ainda bem que tu nos vais mostrando quão ricos são esses povos e culturas que tens visitado…

Que elas sobrevivam a este mundo global (uma forma um pouco encoberta de conquista…).

Um abraço, meu amigo viajante.

Comentário enviado por Daniel (Cristo) em 24.MAI.2005 – 02:00

Eu acho que os povos tâm que ter uma grande adaptação ao nosso mundo e ao nosso espaço.

Comentário enviado por Paulo Moita em 14.MAR.2006 – 12:32

Eu gostaria também de descobrir como os povos aborígenes vivem.

Comentário enviado por Matheus em 04.JUN.2006 – 15:18

Filipe Morato Gomes

Autor do blog de viagens Alma de Viajante e fundador da ABVP - Associação de Bloggers de Viagem Portugueses, já deu duas voltas ao mundo - uma das quais em família -, fez centenas de viagens independentes e tem, por tudo isso, muita experiência de viagem acumulada. Gosta de pessoas, vinho tinto e açaí.

Deixe um comentário