Chego a Díli, Timor-Leste, um dos momentos mais ansiados de toda esta viagem. Relembro o massacre de Santa Cruz, a vida dos guerrilheiros nas montanhas e de todos aqueles que lutaram pela independência do país. Um olhar para um passado recente de muita dor e sofrimento.
Estava há poucas horas em Timor-Leste quando, num impulso, fiz sinal a um táxi que passava numa rua de Díli. “Santa Cruz”, disse. Costuma ser um prazer conversar com taxistas mas, naquela ocasião, não pronunciei mais palavra alguma. Seguia para um lugar tristemente célebre e as imagens daquele 12 de Novembro, treze anos atrás, passavam a alta velocidade diante dos meus olhos semicerrados.
Via uma criança sentada no chão, com a face ensanguentada e o olhar inocente, sem compreender o que se passava. Um jovem levantando a camisa para mostrar o abdómen atingido por uma bala certeira. Gente a correr desesperadamente, saltando o muro, tentando salvar a própria vida. Ouvia o barulho dos tiros. Via gente a cair. E militares fardados, ao fundo, apontando as suas armas ao que quer que se mexesse. Quando o táxi parou em frente ao cemitério de Santa Cruz, as imagens feitas pesadelo terminaram abruptamente. O muro do cemitério estava do lado esquerdo. Do lado de lá, o local onde tudo aconteceu. Era tempo de rebobinar o filme das memórias e homenagear quem perdeu a vida pela mais nobre das causas: a liberdade.
Passei o portão de ferro, cabisbaixo, e avistei um velho de rosto marcado por uma vida de trabalho, o corpo franzino e enrugado, as mãos calejadas e um sorriso espontâneo. Era um velho bonito, o Sr. Filomeno, coveiro no cemitério de Santa Cruz. Pressentiu o que me levara àquele lugar e, como resposta a um “bom dia”, disparou: “senhor, não estão cá os que morreram no massacre. Foram levados em camiões pelos indonésios e enterrados em valas comuns”. Falava daquele mesmo dia, o dia em que um desfile pacífico acabou por ser transformado numa carnificina. “Crianças, mulheres, velhos… [os militares indonésios] dispararam contra todos os que se esconderam no cemitério”, dizia o Sr. Filomeno. Tinha sido usado o mais primitivo dos métodos para calar vozes discordantes mas, naquele dia, o jornalista britânico Max Stahl estava lá e filmou tudo. E o mundo não pode mais fingir desconhecer o que se passava na parte leste da ilha de Timor.
Saía de Santa Cruz quando um homem na casa dos cinquenta me cumprimentou. Tinha vivido e lutado, nas montanhas, durante sete anos. “Tempos difíceis…”, lancei para o ar, puxando conversa. “Sim, vivíamos como galos bravos. Dormíamos em qualquer lugar, usando um toldo para nos protegermos da chuva”, disse e, sem interrupções, continuou. “Detectávamos o inimigo [militares indonésios] pelo cheiro”, sorria. “Eles fumavam e, antes mesmo de os vermos, já sabíamos que estavam por perto. Ou então por causa do barulho que faziam com os tachos que traziam nas mochilas”, contava com nítida satisfação. “E eles não vos viam?”, perguntei, curioso. “Muitas vezes passavam a cinco ou seis metros e nem davam por nós. Outras vezes davam-se encontros cara a cara. E aí, senhor, era matar ou morrer”, afirmou, conferindo maior seriedade à expressão do rosto. O diálogo estava a chegar a um ponto demasiado sensível quando o homem deu por finda a conversa. “Não posso contar mais”. Mudámos de assunto, despedimo-nos e apanhei novo táxi de regresso ao centro de Díli.
As ruas da cidade estavam limpas e embelezadas. O Presidente da Indonésia visitava Díli e o Presidente da República de Timor-Leste, o antigo comandante Xanana Gusmão, ameaçou demitir-se caso houvesse qualquer tipo de protestos. Passada a época da luta de guerrilha, o tempo agora é de estabelecer boas relações com o poderoso vizinho.
Dias depois, abandonei Díli em direcção aos outros distritos do país. Enquanto esperava a partida da biskota – mini autocarro que faz as ligações entre as diferentes povoações da ilha -, fui abordado por um jovem. Os timorenses são afáveis, curiosos e gostam de conversar com os malaes (brancos, estrangeiros). E a luta pela independência é um dos temas favoritos nessas conversas. Porque tudo é muito recente. Porque quase todos os timorenses estiveram envolvidos. Ou porque quase todos viram familiares perecer durante esse combate. O homem chamava-se Ramos e ia para Baucau visitar um irmão. Orgulhoso, contou que o seu pai tinha passado dezasseis anos a combater nas montanhas, como guerrilheiro das FALINTIL, sem nunca voltar à aldeia natal. “O meu pai era forte, mas foi apanhado no mato e deram-lhe um tiro”. Falava do pai com uma admiração desmedida, como se se referisse a um herói. “Mas durante toda a tua vida nunca o viste…”, arrisquei. “Vi, senhor. Em fotografias.”
Nota: Um grande abraço aos professores portugueses a leccionar em Timor-Leste, que me receberam de braços abertos em todos os locais por onde passei. Obrigado por ajudarem a tornar a minha estada aí tão agradável e divertida. Até sempre, companheiros!
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.
Timor, um mar de recordações. CPM 3578 de 1972. Fui polícia militar e professor, Madabeno, uma terra cheia de saudade. Setenta alunos plenos de esperança que rapidamente se esvaneceu. Quantos sobreviveram a uma tomada de posição ingénua e dramática? Imaginar que o mundo iria aceitar uma Cuba no centro da Indonésia, no norte da Austrália, a dois passos de Sydney. Apodeti, Fretilin, Udt, uma autorização a uma invasão bárbara com consequência terríveis. O assumir de responsabilidades deve ser tremendo. Deus os ajude.