Uma crónica diferente do habitual, escrita no rescaldo da minha experiência trabalhando como jornalista / repórter fotográfico em cenários de grande pressão emocional. Uma reflexão sobre uma profissão que muito admiro: a de jornalista.
Sempre me interroguei como conseguiriam os jornalistas trabalhar em cenários de guerra ou de catástrofes naturais. Como conseguiria um jornalista fazer qualquer pergunta a uma mãe que acabou de perder um filho, sem parecer um abutre sobrevoando uma carcaça? Como conseguiria um fotógrafo apontar a sua objectiva a um corpo deformado, fotografar um indivíduo ferido em vez de ajudá-lo, estar a um palmo de uma criança esfomeada e fotografá-la? O que sentem esses profissionais da comunicação quando, perante situações de grande pressão emocional, têm que fazer o seu trabalho independentemente do que lhes for na alma, do sofrimento que lhes for contagiado e, tão objectivamente quanto possível?
Já aqui escrevi que não sou jornalista nem fotógrafo profissional. Adoro ambas as actividades mas não ganho, até ver, a vida com elas. Acontece que, por via das circunstâncias, acabei por vestir a pele de um repórter fotográfico na ilha de Phuket e em Khao Lak, na Tailândia e, posteriormente, em Galle, no Sri Lanka, por altura do tsunami que devastou essas e muitas outras regiões do planeta. E é sobre essa experiência que agora discorro algumas palavras.
O poder de uma lente
Não é fácil trabalhar em circunstâncias daquelas. É um dado tão óbvio como verdadeiro. Mas, por incrível que possa parecer, a máquina fotográfica aparenta ter um poder fortíssimo sobre o profissional que a carrega. Olha-se pela objectiva e não se sente o sofrimento de quem perdeu tudo na vida, tenta-se captá-lo. Aponta-se a lente a um cadáver putrefacto e não se sente o seu cheiro, vê-se as suas cores. Olha-se através da máquina e não se vê uma criança esfomeada, antes procura-se o melhor ângulo, a melhor composição, o enquadramento perfeito. Baixa-se a lente e começa o sofrimento.
Lembro-me de descobrir um cadáver de aspecto totalmente abominável por entre os destroços de um resort na praia de Khao Lak. Olhei para a companheira de trabalho e ela acenou com a cabeça como que dizendo “fotografa, é importante”. O cheiro era nauseabundo, a visão do corpo aterradora. Dei meia volta, olhei para o outro lado sem valentia para o encarar. Respirei fundo, ganhei coragem. E foi então que tirei uma sequência de fotos, imperturbável, de vários ângulos, diferentes perspectivas, procurando o enquadramento perfeito para algo que poderia, de uma forma brutalmente cruel, mostrar o que aconteceu em Khao Lak. Sempre imperturbável, protegido pela lente da máquina fotográfica. Terminei a sequência e afastei-me do local até um ponto onde pudesse retirar a máscara da face e respirar um pouco de ar isento daquele cheiro medonho. Parei junto a dois homens que, próximos do mar, descansavam do trabalho de busca e resgate de vítimas. Assim que levantei a cabeça, desatei a chorar compulsivamente. O que tinha acabado de presenciar tinha-se finalmente transformado em emoções. Como se a lente tivesse o poder de, até então, as bloquear. Acendi um cigarro, acalmei durante o tempo que o mesmo foi sendo queimado, e prossegui o meu trabalho em idênticas circunstâncias.
Noutra ocasião, no Sri Lanka, uma família tentava recolher os tijolos aproveitáveis no meio dos escombros daquilo que outrora fora a sua casa. Alguns membros da família tinham sido mortos, outros continuavam dados como desaparecidos. Pediram-nos água, apenas água. E diziam-se sem roupas e esfomeados, mas água era o que precisavam. Apesar de tudo, trabalhavam afincadamente para reconstruir, tão cedo quanto possível, um tecto para dormir. Fascinado pela imagem de uma criança de tenra idade ajudando o seu pai naquela tarefa, fotografei sem parar. Imagens de força de vontade, imagens de alguma esperança no meio de tanto horror e destruição. Uma vez mais, fi-lo de forma imperturbável. Andei até ao carro e peguei na única garrafa de água que nos restava. Voltei para junto da família e ofereci-lhes a água. Nessa altura, já não consegui fotografar. Regressei ao carro e emudeci. E, novamente, desabei em pranto. O desespero alheio não é fácil de ignorar, assim que o homem toma o lugar do profissional.
Demorará algum tempo até que estas e muitas outras imagens se desvaneçam na minha memória. Vi e fotografei coisas demasiado perturbantes. Muito admiro todos aqueles profissionais que enfrentam estas realidades e nos fazem chegar relatos do que observam. De máquina fotográfica ou de caneta em punho. Escrever não é mais fácil do que fotografar. Jamais esquecerei, por exemplo, as perturbadoras crónicas que todos os dias chegavam de Timor-Leste pela pena do jornalista Luciano Alvarez, naqueles dias de terror ocorridos há alguns anos. Imagino o que terá sofrido para as escrever. Ao passar uma ideia para papel, tudo vem imediatamente à tona. Como no momento em que escrevo esta crónica. E, sendo assim, não há como não ter os olhos turvados pela comoção.
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.
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