Visito Ban Nai Soi, uma aldeia no norte da Tailândia habitada pela minoria étnica Karen de “pescoço comprido” com sentimentos ambivalentes. Estaria prestes a entrar num deplorável zoológico humano ou, simplesmente, a ver a forma de sobrevivência encontrada pela tribo? Um assunto complexo para o qual, tal como noutros lugares do planeta, é difícil encontrar resposta. Nem tudo é branco ou preto. E a dúvida subsiste…
Estávamos a uma semana do violento tsunami assolar a costa de vários países e comover o planeta. Nessa altura, estando no norte da Tailândia, tinha uma enorme curiosidade em conhecer algo tão especial quanto controverso. Sentimentos ambivalentes assaltavam-me na hora de decidir visitar uma aldeia habitada pelas Karen de pescoço comprido. Não conseguia antecipar o que iria sentir quando estivesse frente a frente com uma dessas mulheres. Zoológico humano ou, simplesmente, uma forma de sobrevivência?
As Karen de pescoço comprido – nome que advém da espiral de cobre que as mulheres usam em volta do pescoço e que o faz parecer incrivelmente longo – são uma minoria étnica proveniente da vizinha Myanmar. Fugiram da sua terra natal na tentativa de escapar à brutalidade de um regime militar odioso. E a Tailândia, consciente das potencialidades turísticas da excentricidade desta tribo que fascina fotógrafos e turistas em geral, acolheu-as de braços abertos. Acontece que a decisão não tem como base nenhuma premissa filantrópica. Muito pelo contrário. E é aqui que as dúvidas atormentam qualquer viajante consciente.
O governo da Tailândia não atribui aos Karen a cidadania tailandesa. As famílias não são donas do solo que pisam, não têm direitos rigorosamente nenhuns. Vivem como refugiados e não têm, inclusive, liberdade para sair da sua aldeia. São prisioneiros ao ar livre. Mas dizem-se felizes e agradecidos. Tentando não fazer julgamentos precipitados, aluguei uma moto e segui para a pequena aldeia de Ban Nai Soi, província de Mae Hong Son, para formar uma opinião.
No caminho, barreiras militares controlavam quem passava e anotavam as matrículas dos veículos. A entrada na povoação era paga – 250 Baht, o equivalente a cinco euros – e, explicavam num folheto, o dinheiro é usado “para a sobrevivência da população, para apoiar a sua cultura”. Desconfiado, percorri a passo lento os quelhos de terra batida de Ban Nai Soi. Ali viviam 38 famílias, num total de 350 pessoas, o que constitui o maior agrupamento da etnia em solo tailandês. O ambiente era o de uma feira em dia de pouco movimento. Dezenas de rudimentares barracas de venda de artesanato – mantas, lenços ou as próprias expirais de cobre – e muitas outras bugigangas estavam montadas na rua principal da aldeia. Mulheres Karen, impecavelmente vestidas com trajes tradicionais, abordavam os poucos turistas num inglês ou espanhol imaculados, na tentativa de os atrair para a sua banca de venda.
Encontrei a jovem Major – ou Maria José, como depois se apresentou – numa dessas barracas. Cativado pela sua capacidade de comunicação e pelo seu discurso invulgarmente bem articulado, fui ficando na sua companhia. E foi então que a conversa rolou livremente. “A minha mãe pôs-me o colar aos cinco anos de idade, mas agora uso-o por opção”, respondeu quando inquirida sobre o assunto. “Pesa cinco quilos, mas já não o vou aumentar mais”, continuou. Contou que fala fluentemente inglês, francês, espanhol, basco e catalão, tudo aprendido “com os turistas”. E, sabendo-me português, ensaiou umas frases em galego, do qual afirmava falar apenas “um pouquinho”. Não havia então qualquer desconforto entre ambos, sentia que podia inquirir Maria José sobre temas mais delicados.
“Maria José, não pretendes voltar ao teu país?”, arrisquei. “Sim, no futuro gostava de voltar a Myanmar, mas não com este regime… só quando houver democracia”, respondeu muito segura de si. “Mas gostas de estar aqui?”, insisti, expectante. “Sabes, há coisas que gosto e outras que não. Gosto muito da Tailândia, aqui temos melhores condições de vida, vivemos do turismo. Mas não suporto a falta de liberdade de movimentos, não podemos sair da aldeia”, responde sem problemas. Referiu ainda que acalenta a esperança de um dia ter a nacionalidade tailandesa e assim ver aumentados os seus direitos. Um sonho tão simples quanto improvável de ser concretizado, pelo menos no curto prazo.
Deixei a aldeia com os mesmos sentimentos ambivalentes que me atormentavam à chegada. Por um lado, compreendo agora muito melhor todos aqueles que, em conversas informais, argumentaram que visitar uma aldeia Karen de pescoço comprido é uma forma de ajudar a tribo a subsistir. Embora isso possa revelar alguma conivência com os métodos e objectivos das autoridades tailandesas, não deixa de ser uma indesmentível verdade. Mas, por outro lado, não consigo ensurdecer o martelar das últimas palavras de Maria José nos meus ouvidos: “adoraria poder sair daqui; o mundo deve ser tão bonito!” A dúvida subsiste.
Nota: por uma questão de actualidade relacionada com o tsunami que entretanto assolou esta região do globo, a publicação desta crónica, e da seguinte, foi retardada. As crónicas relativas à catástrofe viram já a luz do dia mas recuo agora no tempo até antes desse momento. Depois disso, a publicação retomará a ordem cronológica habitual.
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.