Faz agora um ano que morreu o Prémio Nobel colombiano, Gabriel García Márquez, inventor de Macondo de Cem Anos de Solidão, “país” que pertence ao imaginário da Colômbia e dos seus leitores, “país” de memórias perdidas e de pessoas que simplesmente não esquecem. Macondo é esse espaço da infância de García Márquez, banhado pelas águas turvas e revoltosas do rio Magdalena. Foi atrás desse mítico rio, que rasga a Colômbia do mar do Caribe até ao coração dos Andes, que o escritor britânico Michael Jacobs empreendeu em The Robber of Memories – A River Journey Through Colombia (Granta Books, 2012) uma memorável viagem de Barranquilha até à origem, a fonte do Magdalena, 1.500 quilómetros Colômbia adentro.
Não foi fácil. Apesar de tudo estar mais calmo na (ainda violenta) Colômbia, viajar pelo Magdalena – como os navegadores espanhóis e portugueses o haviam feito no século XVI, ou o explorador alemão Alexander Von Humboldt, no século XIX, nas suas incursões pela descoberta da fauna e da flora da bacia hidrográfica desse raro rio que corre de Sul para Norte – é ainda uma aventura digna dos destemidos.
Este “gringo”, que conhece bem a Colômbia (ter contactos em vários pontos do país é essencial quando se chega a cidades dominadas por guerrilhas ou paramilitares, como se verá, nos encontros de calafrios com as FARC) e viajou por várias regiões da América Latina, guia-nos com a mesma paixão e serenidade com que o rio serpenteia, num labirinto de memórias, de histórias perdidas no coração da América, de gente sem nome e sem rosto, vítimas da violência absurda de um conflito civil sem fim à vista, de uma industrialização brutal e suja que contrasta ainda com a natureza virgem, quase intocada, quase esquecida.
Partimos das memórias íntimas do escritor – ou da obsessão com esse “ladrão de memórias” que é o tempo. Primeiro, um pai com Alzheimer de quem conhecemos diários dos anos 40, em Itália. Depois, uma mãe relativamente débil, caminhando para a senilidade. Finalmente, o encontro com o grande escritor, Gabo, numa noite quente em Cartagena, aquele que perdendo pouco a pouco a memória conseguiu viver para contá-la, toda, e são as suas palavras, num acesso de brilhante lucidez, que ecoam durante a subida de Jacobs de um rio que tanto tem de milagre como de pesadelo: “Lembro-me de tudo sobre o rio Magdalena, absolutamente tudo…”
A empreitada de Jacbos leva tempo – arranjar um barco da Marinha Fluvial da Colômbia que aceite levá-lo, a si e ao seu amigo colombiano, porque um “gringo” no mato é presa certa para guerrilleros ou paras; acordar de madrugada para contemplar o choque abrupto das águas barrentas do rio de encontro ao azul-turquesa do Caribe na chamada Boca de Cinzas, ou encontrar fantasmas entre as brumas de uma bacia hidrográfica de mais de 500 quilómetros, antes de o rio se tornar simplesmente um rápido, irreversível, para Norte; contornar bancos de areia porque nesse ano pouco choveu e o rio corre baixo; conhecer jovens militares que não sabem onde (e porque) estão; ouvir histórias tristes de marinheiros de água doce ou uma grande e gorda gargalhada de um capitão que parece um cantor de Blues americano, homens fininhos e pequenos que esperam o próximo apeadeiro para visitar bordéis, gente que resiste e que insiste em contar aos vivos o que se passou com os mortos.
Sabemos dos romances de Gabo como o Magdalena transporta o horror e a vitalidade de um país inteiro. Sabemos que foi aquela viagem que Gabo fez com o seu pai, em 1943, que espoletou todo um imaginário em torno de um rio que tem levado as memórias, as tristezas e o esquecimento dos colombianos – e também os corpos, a poluição, o medo e o fascínio pelo desconhecido. Foi atrás disto que Michael Jacobs partiu, numa viagem em que chegamos ao coração das trevas colombianas e, de repente, o céu se abre para um país do futuro.
- Título: The Robber of Memories – A River Journey Through Colombia
- Autor: Michael Jacobs
- Editor: Granta Books (versão inglesa)
- Ano: 2012
- Páginas: 256
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