Entro no Laos encantado com a possibilidade de conhecer Luang Prabang, cidade Património Mundial que a UNESCO considera “a mais bem preservada cidade do sudeste asiático”. E é no Laos, na povoação de Vang Vieng, que tomo o primeiro contacto com o drama humano do qual ninguém imaginava, ainda, as reais proporções.
Chiang Kong, no norte da Tailândia, foi o último pedaço de terra trilhado antes de partir à descoberta do Laos. Estava prestes a entrar no país mais bombardeado de toda a história da humanidade, em termos per capita, mas não eram os vestígios dos bombardeamentos americanos que, desta vez, procurava. Ansiava, isso sim, conhecer Luang Prabang, “a mais bem preservada cidade do sudeste asiático” – segundo a UNESCO – e o principal motivo desta incursão ao Laos.
Atravessar a fronteira foi simples e rápido. Uma vez no Laos, cansado de carrinhas, autocarros e tuk-tuks e fascinado por viagens de barco, em breve descia o Rio Mekong em direcção a Luang Prabang. Uma jornada de dois dias a bordo de uma embarcação extremamente desconfortável, e que se haveria de revelar um tanto monótona mas inteiramente justificada pela magnificência do destino.
Durante a viagem, os momentos de emoção aconteciam nas paragens em pequenas aldeias das margens do rio, quando o barco era abruptamente invadido por vendedoras de géneros alimentícios para aconchego do estômago dos passageiros. Vendiam coisas muito estranhas e diferentes, das quais nunca descortinei o nome. Vários animais eram adquiridos pelos passageiros locais, uns já cozinhados e prontos a degustar, outros ainda por pelar. Intrigado, olhei para um vizinho de assento que trincava uma espetada de carne de um animal deveras esquisito. Impelido pela minha curiosidade, ofereceu-me um pedaço do que parecia ser uma asa desse animal. Extremamente saborosa, por sinal. Acabara de provar carne de morcego!
Luang Prabang era uma cidade em final de tarde quando o barco atracou no cais. Tempo apenas para encontrar alojamento e preparar-me para um grande acontecimento que desejava presenciar na madrugada do dia seguinte. Diariamente, por volta das seis da manhã, muitas centenas de monges percorrem as ruas de Luang Prabang para receber dos habitantes diversas oferendas e a comida que irão ingerir no dia que então se inicia. Na primeira madrugada na cidade, ainda sonolento, dirigi-me para o cenário onde o acontecimento tinha lugar.
De todos os templos de Luang Prabang – e são imensos – filas de monges de todas as idades saíam para as ruas, onde mulheres sentadas ou ajoelhadas e homens de pé lhes entregavam uma porção de algo. Muito arroz pegajoso, pequenas doses de comida embrulhadas em folhas de bananeira, uma peça de fruta, algum dinheiro e um ou outro doce faziam a maior parte das oferendas. Alguns turistas compravam víveres de vendedoras que oportunamente apareciam e juntavam-se aos habitantes locais em vários pontos dos arruamentos da cidade. Se templos como o de Xieng Thong são, por si só, de uma beleza avassaladora, esta visão matinal colorida pelo laranja e açafrão das roupas dos monges ultrapassou todas as expectativas.
Luang Prabang é uma localidade acolhedora mas de reduzida dimensão. Ao fim de um par de dias, não havia muito mais para desvendar. Mas sabia da existência de aldeias onde artesões produzem o papel “saa”, uma exclusividade do Laos fabricada a partir de uma árvore de fruto que abunda na região. Aluguei uma bicicleta e pedalei à descoberta dos arredores, seguindo para o vilarejo de Xang Kong, famoso por essa actividade. Homens e mulheres pilavam a pasta de papel ainda em bruto, recorrendo a troncos de madeira. Outros humedeciam a pasta já preparada e colocavam-lhe ornamentos naturais como folhas ou pétalas de flores. E era um cenário maravilhoso, ver uma imensidão de placas com o papel harmoniosamente decorado espalhadas por todo o lado, secando ao sol quente do meio da tarde.
Esgotadas as actividades em Luang Prabang, decidi seguir para Vang Vieng e explorar esse reduto mochileiro. Era lá que me encontrava por altura do tsunami. Um dia passado a descer um rio, tranquilamente sentado numa enorme câmara-de-ar de um pneu de camião, impediu-me de saber mais cedo do acontecimento. E não foi antes do fim da tarde, ao regressar à povoação e procurar um ponto de acesso à internet, que uma agitação anormal deu a entender que algo grave havia sucedido. Viajantes empoleiravam-se uns atrás dos outros, olhando para monitores onde se navegava pelos sites de jornais internacionais e cadeias de televisão. Não se falava de outra coisa. Uns mostravam-se incrédulos perante as notícias que iam chegando, outros interrogavam-se já sobre se aquele ou aqueloutro amigo não estaria nalguma das zonas afectadas. Era o início de um drama humano do qual ninguém imaginava, ainda, as reais proporções.
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.