Chego a Mandalay com objectivos bem definidos. Pretendo visitar a excêntrica ponte U’Bein, em Amarapura, passear de barco até ao imponente pagode de Mingun, e respirar um pouco do espírito combativo dos Moustache Brothers, a mais famosa trupe de comediantes de Myanmar. Tempo de soltar umas quantas gargalhadas contra o regime que governa o país.
Vivia-se um ambiente de reunião secreta entre os forasteiros presentes. O rés-do-chão da casa tinha sido transformado numa pequena sala de espectáculos, com um microfone envelhecido montado sobre um palco, à esquerda, e duas dezenas de cadeiras de plástico espalhadas pelo cubículo. As paredes encontravam-se cobertas com marionetas, fotografias da Nobel da Paz Aung San Suu Kyi e recortes de jornais internacionais sobre a história da trupe. Na fachada, uma placa anunciava: “Moustache Brothers – comediantes, palhaços, arlequins”.
Faltavam quarenta e cinco minutos para o início do espectáculo. Sentei-me no exterior da casa em volta de um braseiro, à conversa com um dos adolescentes da família. Aparentava 18 ou 19 anos, mas estava já imbuído do mesmo espírito combativo dos mais velhos. A modesta casa dos três Moustache Brothers, situada em pleno centro de Mandalay, deverá ser um dos raros lugares urbanos, em Myanmar, onde se fala livremente sobre política. “Eles [a junta militar] é que têm medo de nós, porque dizemos a verdade. Nós não receamos nada”, disse-me de supetão, em início de conversa.
Mas os Moustache Brothers já sofreram na pele as consequências da sua rebeldia criativa. Par Par Lay, o mais velho dos irmãos, passou cinco anos e sete meses da sua vida na prisão de Myitkyina, incluindo alguns meses de trabalhos forçados. “Partindo pedra e construindo estradas”, explicou. Foi detido enquanto dormia, após um espectáculo nas proximidades da residência de Aung San Suu Kyi, e condenado sem julgamento pelo crime de “fomentar a desunião do país”. Durante todo esse tempo a família apenas o viu durante trinta minutos, numa única ocasião.
O tempo voou e a performance estava prestes a começar. Zu Law, o segundo irmão da trupe, abriu as hostilidades, gracejando: “se a KGB [nome com que apelidam a polícia militar] vier cá, nós fugiremos pela porta das traseiras; só prenderão os turistas”. Antigamente, não era raro a polícia comparecer munida de câmaras de filmar na tentativa de captar a subtileza das piadas políticas, encapotadas em metáforas aparentemente inocentes. “Mas não se preocupem”, continuou, mais sério, “eles gostam dos vossos dólares, ninguém vos incomodará”.
Passou já bastante tempo desde que o último militar apareceu num espectáculo dos Moustache Brothers. A trupe é demasiado conhecida além fronteiras para ser beliscada. Dezenas de jornais e revistas de todo o mundo já escreveram sobre a sua subversiva actividade. Até hollywood já dedicou uma cena de um filme protagonizado por Hugh Grant à prisão de Par Par Lay. E essa visibilidade tem-lhes garantido, nos últimos anos, total imunidade. Apesar disso, fazem parte de uma lista negra de organizações indesejadas e, por isso, ninguém pode contratar os seus serviços de comediantes. As suas performances estão confinadas àquele rés-do-chão. Piadas políticas, anedotas, interacção com os turistas e danças tradicionais fizeram parte do espectáculo pelo qual os presentes desembolsaram cerca de dois euros como pagamento. Quando o espectáculo terminou, tinha já decidido que haveria de ali voltar.
De permeio, rumei à cidade antiga de Mingun num pequeno barco a motor. Uma viagem muito interessante onde era possível observar o quotidiano nas margens do Rio Ayeyarwady, com pessoas tratando da sua higiene, outras lavando roupa, pescando ou consertando redes de pesca, e crianças brincando nas orlas arenosas. Toda a vida destas comunidades gira em torno do rio. A povoação propriamente dita, valeu pelo inacabado pagode Mingun, escavado numa enorme formação rochosa que se eleva do solo, imponente. Em redor, dezenas de comerciantes tentavam vender pinturas, esculturas, marionetas, roupas e mil outras coisas de utilidade duvidosa, de uma forma demasiado persuasiva para ser agradável.
Já a tarde ia alta quando o barco regressou a Mandalay. Aluguei uma moto táxi e rumei a Amarapura para apreciar o pôr-do-sol na excêntrica ponte de U´Bein. É uma ponte de madeira com 1.200 metros de extensão, de aspecto desengonçado e pouco seguro, erguida sobre grandes estacas de madeira, naquela que é uma das principais atracções da região. Monges de todas as idades aguardavam na ponte pela oportunidade de praticar o seu inglês com os forasteiros que diariamente lá se dirigem para desfrutar da paisagem e fotografar. U´Bein, sob as cores quentes de um entardecer sem nuvens, constitui uma visão caricata e muito fotogénica.
Dias depois, voltei à casa dos Moustache Brothers, curioso em ver que mudanças ocorrem entre cada performance. Surpreendentemente, o espectáculo foi exactamente igual ao que presenciara anteriormente. E é assim há quase nove anos, todos os dias, ininterruptamente. “Nunca desistiremos. A democracia há-de chegar a Myanmar”, rematou, sorrindo, o mesmo jovem com quem falara da primeira vez.
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.
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