Entro no Camboja convicto de estar apto a enfrentar as sinistras visões dos horrores praticados pelo sanguinário Pol Pot e seus Khmer Vermelhos. Mas acabo por descobrir que há coisas para as quais nunca se está suficientemente preparado. Um relato repugnante sobre os Campos da Morte e o secreto S-21, em Phnom Penh.
Entro no Camboja a bordo de uma embarcação que sobe o rio Mekong em direcção à capital Phnom Penh. E, ao primeiro contacto, Phnom Penh aparenta ser uma cidade como tantas outras do sudeste asiático. O trânsito caótico, milhares de motorizadas nas ruas, poluição quanto baste, resquícios de arquitectura colonial, mercados apinhados, pobreza, muitas crianças. Mas algo não bate certo. Vê-se demasiada gente com próteses nos membros, demasiadas muletas nas ruas da cidade, pedintes em número exagerado, incontáveis órfãos de pai, de mãe, de esperança, demasiada mágoa espelhada nos olhares. O espectro de Pol Pot e dos seus horrendos Khmer Vermelhos paira ainda, omnipresente, sobre todo o povo cambojano.
Sabia de antemão muitas das barbaridades que o regime liderado por Pol Pot praticou na tentativa de transformar abruptamente o Camboja num país de orientação maoísta. No espaço de apenas quatro anos, estima-se que cerca de dois milhões de pessoas tenham sido assassinadas, com especial ênfase nos mais letrados – o conhecimento é inimigo da fácil imposição de ideais – e respectivos familiares – futuros potenciais vingadores da morte do seu ente querido. A moeda foi abolida, o sistema de correios paralisado. As populações foram arrastadas das cidades para zonas rurais onde serviam de força de trabalho escravo em cooperativas agrárias. As famílias foram divididas. Milhões de minas foram colocadas em todo o país. E o Camboja quase se isolou do mundo exterior. Uma fase negra na história do país.
Decido, pois, tomar contacto mais directo com essa realidade passada mas não longínqua. Alugo uma motorizada e sigo para o Museu do Genocídio Tuol Sleng, antigo Security Office 21 (S-21), tido como o mais secreto órgão do regime Khmer, especificamente desenhado para interrogatórios e extermínio de oponentes ao regime. Visitei recentemente o Museu da Guerra em Saigão e julgava estar preparado para tudo. Mal sabia o que aqui iria encontrar.
O S-21 instalou-se no complexo de uma antiga escola primária. Fecha-se os olhos e quase se consegue imaginar um normal período lectivo com crianças a pular alegremente, constantes gritarias inocentes, uma bola de futebol pontapeada por candidatos a futuros craques, uns quantos joelhos esfolados por quedas sem importância e alguns namoricos precoces. Fecha-se os olhos e parece que os miúdos estão ali, por todo o lado, como se a escola não tivesse, de facto, encerrado. Abre-se os olhos e as grades de ferro nas janelas dissipam qualquer ilusão. Entra-se nas antigas salas de aula e o terror torna-se assustadoramente palpável.
Percorro as divisões do museu em fúnebre silêncio. Muitas das salas de aula foram transformadas pelos Khmer Vermelhos em espaços de interrogatório e tortura. Outras tantas em celas de detenção. Barras de ferro de seis metros de comprimento serviam para amarrar 20 a 30 prisioneiros pelos tornozelos. Alternadamente, de um lado e de outro, para que fossem obrigados a permanecer com as cabeças em direcções opostas. Sempre deitados. Não podiam levantar-se, falar ou sequer sussurrar. Nem tão pouco urinar ou mexer o corpo sem pedir autorização. A ordem era esperar enquanto não houvesse outras ordens para cumprir. Até ao dia final.
Um pintor cambojano – um dos poucos que saiu da prisão com vida -, retratou em tela aquela e muitas outras cenas observadas com os próprios olhos durante a sua reclusão. Percorro lentamente o olhar por todo o seu trabalho, impressionado, até que me detenho em duas telas colocadas lado a lado. Pretendem retratar a forma como o regime de Pol Pot eliminava crianças de tenra idade. Fito as telas completamente petrificado. Numa vê-se um soldado a atirar uma criança ao ar e outro, de espingarda em punho, a usar o pequeno corpo como alvo, disparando. Na outra, um soldado prende um bebé pelos pés e arremessa-o em direcção a uma árvore de grande porte, esmagando sem piedade a cabeça do recém-nascido. “Para poupar balas”, explicam-me.
Abalado, saio do museu e sigo de motorizada para os Campos da Morte onde eram enterrados os prisioneiros vindos do complexo S-21. Tudo é tão recente que ainda hoje há ossos humanos brotando do chão, por todo o lado. A pacatez do lugar é apenas uma sinistra ironia. Meia dúzia de valas comuns adiante dou de caras com a árvore da tela. Desabo. Há coisas para as quais nunca se está preparado…
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.