Tenho sentido um crescente interesse em documentar o trabalho de artesãos portugueses. Principalmente daqueles que dedicam o seu tempo às artes tradicionais, valorizando as tradições locais e contribuindo para que o saber-fazer se mantenha vivo. É o caso dos santeiros de São Mamede do Coronado, na Trofa, que lutam contra o tempo para que a arte sacra não desapareça do Vale do Coronado.
Trata-se de um trabalho artesanal especializado e minucioso, que requer muitos anos de prática, imensa paixão e uma intensa dedicação por parte dos artesãos. E é precisamente esse fantástico trabalho de arte sacra levado a cabo pelos santeiros de São Mamede do Coronado que fui conhecer de perto – e procuro dar a conhecer neste artigo.
Quem sabe não encontra nos santeiros um motivo para visitar Trofa, facilmente acessível a partir da cidade do Porto. Vamos a isso.
Contexto histórico da arte sacra em São Mamede do Coronado
A Câmara Municipal da Trofa publicou um livro muito interessante sobre o trabalho dos santeiros de São Mamede do Coronado, intitulado A produção de Arte Sacra no Vale do Coronado, onde se explica de forma sucinta a história do ofício tradicional na região. Tomo, pois, a liberdade de transcrever algumas das partes mais relevantes abaixo.
“Nos finais do século XIX, tanto em São Mamede do Coronado como em algumas freguesias do concelho da Maia, encontravam-se ainda alguns artífices que, de forma residual, produziam trabalhos de imaginária.
As contingências políticas e sociais da Revolução Francesa, na Europa, e do liberalismo português encetaram o declínio das ordens religiosas, levando a que os núcleos de imaginários e entalhadores das escolas do Porto, Braga e Landim que, direta ou indiretamente, estavam associados aos mosteiros, ficassem perto da extinção. Muitos dos profissionais emigraram para o Brasil ou dedicaram-se a ofícios profanos, como é o caso da marcenaria ou da figuração em barro.
Em 1920, José Ferreira Thedim (1891-1971), descendente de uma família que há várias gerações trabalhava nesta arte, no lugar de Fontes, em São Mamede do Coronado, executou a imagem para a Capelinha das Aparições, no Santuário de Fátima, a partir de uma encomenda da Casa Fânzeres de Braga.
Esta peça, além de satisfazer de forma plena as pretensões de promotores e crentes, gerou um novo tema iconográfico que, mesmo antes da aprovação das aparições pelas autoridades eclesiásticas em 1930, já estava difundido por todo o país. O fenómeno de Fátima, perante a laicidade do regime republicano, tornou-se num baluarte da propaganda de reafirmação da religiosidade do catolicismo e do conservadorismo portugueses.
Em 1930 foi autorizado o culto da imagem nas igrejas levando a um aumento de encomendas à oficina Thedim, fazendo com que esta crescesse de forma considerável. Na segunda metade da década de 1940, o mestre desta oficina realizou duas novas imagens da iconografia mariana de Fátima, a Virgem Peregrina e o Imaculado Coração de Maria. Ambas foram sustentadas nas elucidações da irmã Lúcia, com quem Thedim privou para o efeito.
Tal como os Thedim, existiam outras famílias de imaginários que, oportunamente, já se vinham a adaptar ao novo mercado dos devotos da Cova da Iria. Algumas destas oficinas de santeiros rapidamente adaptaram o seu modo de produção artesanal aos moldes das oficinas-fábrica, através de uma especialização hierarquizada da mão-de-obra que, mesmo trabalhando em série, não suspendeu a execução artesanal.
Em poucos anos, São Mamede do Coronado transformou-se no principal centro de produção da imaginária portuguesa. Mas, a partir dos anos setenta [1970], o ritmo de encomendas começou a baixar e as grandes oficinas acabaram por fechar.
Na atualidade, estes profissionais trabalham, na sua maioria, em casa, num contexto oficinal reduzido, com um, dois ou três trabalhadores.”
Os santeiros de São Mamede do Coronado
Não restam, pois, muitos santeiros no Vale do Coronado. Ainda assim, tive oportunidade de conhecer de perto o trabalho dos últimos três grandes santeiros da região.
São eles Boaventura Matos, especialista em pintura e o decano dos santeiros ainda no ativo; Augusto Ferreira, escultor, o mais novo entre os artesãos no ativo e uma das pessoas que deu a cara pela candidatura dos Santeiros de São Mamede do Coronado a uma das 7 Maravilhas da Cultura Popular; e ainda Jorge Brás, também escultor.
Boaventura Matos, pintor
Foi no atelier de Boaventura Matos que passei a primeira manhã em que decidi visitar o Vale do Coronado e conhecer o trabalho dos santeiros. Assim que o nonagenário abriu o portão de sua casa e entrei na oficina, senti imediatamente que era um privilégio ali estar.
Artista especializado na pintura de arte sacra, Boaventura contou histórias do mestre José Ferreira Thedim – em cuja oficina iniciou a sua aprendizagem aos treze anos de idade – e a famosa escultura de Nossa Senhora de Fátima, por si restaurada; falou do encontro com a irmã Lúcia; e mostrou-se otimista sobre o presente e o futuro dos santeiros de São Mamede do Coronado. Além, claro está, de me ter mostrado algumas das suas obras.
A oficina, poeirenta e desarrumada, era uma delícia para os olhos. Décadas de trabalho estavam marcadas em estalactites de tinta seca a “pingar” da mesa de trabalho. Num vislumbre por todo o espaço, havia dezenas de moldes de madeira em estantes; peças soltas como mãos e olhos; pincéis e recipientes para as tintas; dezenas de ferramentas para desbastar madeira.
E por ali fiquei à conversa, ouvindo as suas explicações sobre a arte santeira, os seus métodos de trabalho, as suas peças favoritas, espalhadas um pouco por todo o mundo; e, claro, o desejo de que a arte não morra e a projetada escola para ensinar a arte aos mais jovens possa ser uma realidade em breve.
Antes de nos despedirmos, na sua inconfundível voz doce, garantiu que não tencionava parar: “Dos 13 anos aos 90 e ainda não estar cansado de fazer [esculturas] ou de pintar, é uma prova de que de facto gosto desta arte. Vou trabalhar até quando Deus me deixar”.
Augusto Ferreira, escultor
Augusto Ferreira é o mais jovem entre os santeiros de São Mamede do Coronado ainda no ativo. Ninguém diria que as suas obras de arte saem de um cubículo minúsculo anexo à casa de família.
Ainda assim, a luz a entrar pela janela poeirenta; o serrim no chão; uma míriade de ferramentas para trabalhar a madeira, como goivas, esquadros, grosas, réguas, compassos, plainas, serras, tornos e berbequins; e a simpatia de Augusto foram a companhia perfeita para mais uma conversa sobre o estado da arte dos santeiros de São Mamede do Coronado; as dificuldades em encontrar jovens interessados na arte da escultura; as implicações positivas da eleição dos santeiros como uma das 7 Maravilhas da Cultura Popular; e tudo o mais que o tempo e boa disposição permitiu aflorar.
Ao contrário de Boaventura Matos, especialista na pintura, Augusto especializou-se na escultura das figuras religiosas, quase sempre esculpidas a partir de um único pedaço de madeira que lhe chega de países tão distantes como o Congo.
Começou a aprender a arte na oficina do mestre Avelino Moreira Vinhas quando tinha treze anos e, hoje em dia, tem produzido peças – tanto religiosas como profanas – para clientes particulares oriundos dos quatro cantos do mundo.
Jorge Brás, escultor
Jorge Brás trabalhou muitos anos na oficina de Boaventura Matos, esculpindo as peças que o mestre haveria de pintar; mas, hoje em dia, trabalha por conta própria. Especializou-se na escultura de arte sacra, em madeira, atividade que leva a cabo na garagem da sua habitação.
Foi lá, aliás, que encontrei uma das peças mais bonitas que vi em São Mamede do Coronado: uma escultura de São Francisco, quase acabada, que Jorge mostrou com notório e justificado orgulho.
Ainda assim, de todos os santeiros de São Mamede do Coronado com quem tive oportunidade de conversar, pareceu-me o menos otimista quanto ao futuro da atividade. Estava pouco crente no sucesso da escola que as autoridades pretendem implementar para não deixar morrer a arte dos santeiros, transmitindo o saber-fazer a gerações mais novas.
Para o bem da arte sacra produzida no Vale do Coronado, espero que Jorge Brás esteja enganado e os santeiros de São Mamede do Coronado prosperem por muitos e bons anos. A ver vamos.
Mais sobre os santeiros de São Mamede do Coronado (galeria fotográfica)
Guia prático
Como chegar a São Mamede do Coronado
A povoação de São Mamede do Coronado está localizada na região sul do concelho da Trofa, a pouco mais de 15 km do centro do Porto; pelo que, tendo viatura própria, não há qualquer dificuldade de acesso. Ao invés, é virtualmente impossível visitar os santeiros da Trofa usando apenas transportes públicos.
Como encomendar arte sacra aos santeiros do Vale do Coronado
Os santeiros de São Mamede do Coronado costumam participar em feiras e eventos – como a ExpoTrofa -, onde se pode ver de perto o seu trabalho. Fora disso, e uma vez que não têm site, o melhor será usar os contactos telefónicos de cada santeiro e combinar diretamente uma visita, durante a qual poderão conversar pessoalmente e conhecer melhor o trabalho de cada artista.
Eis os contactos telefónicos dos santeiros que eu conheci, para que possa agendar uma visita ou fazer qualquer encomenda.
- Boaventura Matos, pintor de arte sacra: 914 651 110
- Augusto Manuel Ferreira, escultor de arte sacra: 919 613 848
- Jorge da Costa Brás, escultor de arte sacra: 914 293 816
Onde ficar
A oferta hoteleira da Trofa é bastante reduzida, pelo que o mais recomendável será ficar hospedado no Porto. Veja, a esse respeito, o artigo onde ficar no Porto, no qual identifico os melhores bairros e hotéis para pernoitar na “Cidade Invicta”. Seja como for, para ver todas as alternativas de alojamento na região pesquise diretamente no link abaixo.
Seguro de viagem
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Parabéns por mais este bom trabalho.
Bom dia caro Filipe Gomes,
Mais uma vez muito grato pela ajuda preciosa que todos os seus artigos me têm dado.
E agora também esta bela reportagem sobre a Arte Sacra dos Santeiros de S. Mamede Coronado.
Um abraço amigo.
Obrigado Filipe Morato Gomes por toda a reportagem narrada sobre os Santeiros de São Mamede do Coronado. É bastante elucidativa. Gostei do que li. Também comungo da opinião do Sr. Jorge Brás mas gostaria que não acontecesse o que ele prevê, contudo o tempo o dirá.
Abraço.
Porque será que os nossos governantes não patrocinam e solicitam a estes artistas que façam escola? Gastamos tanto dinheiro em artes que de arte nada têm e estes valores não os aproveitam. Andamos a perder valores e artes desde que acabaram com as Escolas Industriais.