No coração de uma Mongólia rural, uma inesperada mudança de planos levou-me ao encontro da mais amigável família mongol com quem já tive oportunidade de privar. Acolhido como em nenhum outro lugar por gente pobre e de enorme coração, nunca esquecerei o dia em que povos completamente distintos partilharam gargalhadas, muitos sorrisos e actividades domésticas sem uma única palavra em comum. Mongólia, fascinante Mongólia!
O acaso é um excelente amigo do viajante. Quantas vezes as mais intensas experiências nascem de acontecimentos fortuitos, casualidades, imprevistos. Como agora. Por algum motivo que nunca chegarei a saber, não pernoitámos onde era suposto acontecer. Prosseguimos viagem durante um adicional par de horas. Fatigante.
Mas, chegados ao cimo de uma colina com vista para um pequeno vale, avistámos três ou quatro conjuntos de gers com chaminés fumegantes. Por incentivo do condutor, apontámos ao acaso para um deles. E aí ficámos. No lar de uma família completamente desacostumada à presença de estranhos. Ocidentais muito menos. Gente verdadeira, desinteressada, hospitaleira. Pura. Uma espécie de retrocesso no tempo, na região de Shine Ider, a várias horas de distância de alguma povoação digna de registo.
Fomos recebidos com rasgados sorrisos no rosto. Genuína satisfação. Pelo dinheiro que tanta falta lhes fará. Mas não só. Noutros lugares, a satisfação terminaria aqui. “Money! Money!” – ouvi a despropósito várias vezes Mongólia adentro, gente simples reclamando o pagamento antecipado das dormidas com receio da desonestidade forasteira. Mas com esta família é muito mais do que esse contentamento materialista – sinto, sem margem para qualquer espécie de dúvida.
O ger que nos foi destinado é o lar de um dos casais da geração intermédia. E dos seus três filhos. Mudam-se por uma noite para outro local para que nos possamos instalar. É o mais genuíno ger em que já entrei. O cheiro que de dentro emana penetra sem contemplações narinas acima. E por lá fica. Pequenos cubos de uma espécie de queijo feito com leite de iaque secam pendurados na estrutura de madeira das paredes. E pedaços de carne. E uma bacia de madeira com leite de égua coalhado, acre. A mistura de odores é implacável. Os sabores, esses, já nem preciso testar. São abomináveis. Não importa. Que interessa tudo isso quando somos recebidos de coração aberto, como ilustres visitantes que honram com a sua presença quem os recebe?
Tentámos desajeitadamente ajudar na ordenha dos iaques – tarefa exclusivamente feminina na organização familiar mongol. Com pouco sucesso e muitas risadas dos locais. Cortámos lenha para o fogareiro situado no centro do ger, utilizado para cozinhar e aquecer o lar. Assistimos à preparação das armas para uma sessão de caça, numa busca de carnes diferentes que permitam esporadicamente variar a dieta alimentar. Montámos a cavalo. Conhecemo-nos com mútuo prazer. Divertimo-nos em conjunto.
E eu acabo involuntariamente por me tornar o centro das atenções por via de uma câmara fotográfica digital. Era ver miúdos e graúdos entusiasmados com o objecto, posando ou passando como que despercebidamente em frente da objectiva e, ao mais pequeno som de um clique, em correria generalizada em direcção à máquina para visualização do resultado. E gargalhada colectiva. Emoção, alegria. Uma e outra vez. E outra. Até à exaustão. Tantas as oportunidades, tantas as solicitações sob as cores quentes de uma luz de final de tarde que fiquei cansado de fotografar. Não me recordo de outra vez em que tal me tenha ocorrido.
Tudo praticamente sem palavras, em silêncio. Com gestos expressivos, mímica. E sorrisos. Ninguém conhece qualquer língua estrangeira. Cruzei-me uma única vez com um mongol inglês falante, guia e tradutor que acompanhava um casal de viajantes franceses. Surpreende-me, ao falar sobre as condições de vida nas estepes do seu país: “A vida aqui é muito fácil. Não falta nada. Têm ovelhas, iaques, cavalos, água. Têm tudo o que precisam.” – diz, com um trejeito nos lábios, como que a reforçar que aquilo que afirma é mais do que evidente, óbvio. Desarmado, não sei como retorquir. Muito menos agora, depois de viver por um dia com esta pobre mas feliz família.
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.