Chego àquela que provavelmente é a mais organizada, eficiente e limpa grande cidade de todo o planeta. Encontro uma Singapura longe da imagem preconcebida de meca consumista e centro de negócios, com ruas de casas térreas e fachadas profusamente trabalhadas. E saio de lá com a certeza de que, em Singapura, nada acontece ao acaso.
Arranha-céus espelhados, tecnologia de ponta, gigantescos paraísos comerciais para os consumidores compulsivos e um mundo de oportunidades financeiras, tudo faz parte da imagem que Singapura emana. Imagina-se uma cidade extraordinariamente eficiente, moderna, limpa e organizada. E tudo corresponde, de facto, à verdade. Mas não a toda a verdade. Singapura possui recantos de arquitectura praticamente inalterada desde há décadas. Zonas onde o comércio se faz longe das regras de uma cidade afamada por ser implacável na aplicação das leis. Lugares onde o sms não substituiu ainda a tradicional conversa de rua. Quarteirões onde não existem prédios. E foi nessa Singapura que me deixei envolver.
E tudo começou porque a singapurense Florence aguardava a minha chegada à cidade. Um telefonema depois, Florence aparecia na estação onde os autocarros vindos de Malaca terminam a sua jornada. Estava com pressa e tinha de se deslocar a uma pousada na zona leste da cidade, para efectuar uma tatuagem de hena a um cliente. E foi assim, por puro acaso, que tive a oportunidade de conhecer a magnífica Rua Joo Chiat. Enquanto Florence fazia o seu trabalho, percorri aleatoriamente a zona, deslumbrado por observar uma Singapura muito diferente daquilo que tinha em mente.
As fachadas das casas eram de pedra, profusamente trabalhadas, belas e coloridas. Portadas de madeira cobriam as janelas e ocasionais varandas davam uma graciosidade adicional às habitações. Em zonas com casas recuadas, portões de ferro com a idade a fazer-se notar protegiam as casas dos intrusos. Aqui e ali, filas de azulejos envolviam as janelas e embelezavam as paredes. Deleitado, ao fim de um par de horas a percorrer a Rua Joo Chiat, a perpendicular Katong e outras artérias da área, era altura de beneficiar do ultra eficiente sistema de transportes públicos locais e seguir ao encontro da magia oriental da Little India e do caos controlado de Chinatown.
Ao pisar solo de influência indiana, acabara de entrar numa parte totalmente distinta da cidade. Para além de pormenores arquitectónicos das fachadas extremamente coloridas das lojas e cafés, eram as pessoas que faziam a maior diferença. Uma forte comunidade indiana estava implantada na cidade. E, tal como na própria Índia, era possível encontrar algumas personagens enigmáticas. Um indiano totalmente vestido de branco, com um turbante branco e barba igualmente esbranquiçada, cumprimentou-me no meio de uma pequena rua. Após perguntar de onde era e de dizer meia dúzia de vezes ”oh, vida longa, viagens felizes, boa sorte”, pediu-me para escrever o meu nome num pedaço de papel. Em seguida, rabiscou algo noutra folha de papel, amarrotou-o e entregou-mo. “É para dar sorte”, disse. Solicitou então que escolhesse um número até cinco e uma flor de que gostasse. Respondi. Pediu para abrir o papel previamente escrito e lá constavam, sem margem para dúvidas, o número e a flor que eu havia escolhido. Estranho momento.
De volta à racionalidade, constava nos guias de viagem que havia coisas imperdíveis em Singapura. Saborear o famoso cocktail Singapore Sling e tomar um chá da tarde no imponente Raffles Hotel. Visitar o jardim zoológico ou fazer um safari nocturno nas proximidades. Ou rumar à artificial ilha Sentosa, principal refúgio de fim-de-semana dos habitantes locais e atracção para os turistas. Mas, à parte uma visão exterior do histórico Raffles, nada daquilo me atraiu. Ao invés, depois de Joo Chiat, Little India e Chinatown e, curioso em saber como se gere o planeamento urbano de um pequeno país, era tempo de visitar uma exposição e comprovar que nada em Singapura acontece ao acaso.
No edifício da Urban Redevelopment Authority, uma exibição permanente mostrava aos visitantes a evolução da cidade desde há décadas e, mais ainda, o que irá acontecer nos próximos trinta anos em termos de desenvolvimento. Um homem de negócios sentou-se ao meu lado enquanto visionava um filme sobre uma nova zona de Singapura. “Está tudo planeado, vai demorar vinte anos a construir” – dizia. Tudo estava delineado, desde novas áreas verdes até mega edifícios residenciais e de negócios. E sem necessidade de destruir algumas pérolas do passado que funcionam como íman turístico para quem lá se desloca. Muito bem impressionado, deixei Singapura com a sensação de abandonar uma cidade nação que é um modelo de desenvolvimento equilibrado. Asseada como nenhuma outra metrópole de idêntica dimensão, segura como poucas e possuidora de um sistema de transportes públicos de fazer inveja a qualquer capital europeia, Singapura é um verdadeiro case study para autarcas e decisores.
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.