Três dias e meio a bordo de um comboio russo percorrendo a mítica linha transiberiana, numa experiência única mas por vezes difícil numa altura tão prematura desta viagem solitária. Viagem da capital Moscovo até Irkutsk, na Rússia.
Já na posse do bilhete de comboio e beneficiando da experiência e amabilidade de Irina – amiga de origem siberiana a viver em Moscovo -, decidi abastecer-me de víveres num mercado de rua para uns pacientes três dias e meio a bordo de um comboio em marcha contínua em direcção a leste. Não é tarefa fácil comunicar sem qualquer palavra comum excepto as básicas apreendidas apressadamente, pese embora cada gesto, cada apontar de dedo, cada aceno de cabeça se revele por vezes suficiente para um feliz entendimento. Acompanhado, porém, tudo se afigura extremamente simples pelo que eis-me enfim preparado para a grande jornada transiberiana munido de fruta, água, leite, iogurtes, pão, bolachas, sopas e massas instantâneas e ainda talheres e toalhetes para higiene pessoal.
Moscovo apresenta-se escura quando o comboio arranca, à hora exacta, sem aviso nem alarme. Por feliz ou infeliz casualidade, acabo por verificar que viajo num compartimento de apenas dois lugares e sem qualquer companheiro na cama superior o que, aumentando consideravelmente a privacidade, diminui quase proporcionalmente a oportunidade de construir amizades com outros viajantes durante o longo trajecto. Há, obviamente, os corredores, os locais de fumo nas extremidades das carruagens e o vagão-restaurante, efémeros pontos de encontro entre pessoas que se cruzam cumprimentando-se em línguas diferentes, pessoas que acabam por se habituar à presença alheia – como vizinhos que se toleram sem serem amigos – e pessoas que de facto têm vontade de interagir, de falar, de se conhecer.
Sobra, pois, tempo demais para outras meditações o que, no meu caso, em que me vou ainda habituando a esta nova situação de solitário nómada global, acaba por me fazer reflectir, olhando este espaço vazio que me envolve, que esta solidão temporária talvez não tenha sido o tónico desejável para um começo forte numa tão longa viagem como a que há pouco iniciei. Pensamentos de curta duração, evidentemente, pois não demorarei até comprovar que a espontaneidade das decisões e felizes coincidências acabam invariavelmente por juntar viajantes solitários que comungam do desejo de descobrir e da vontade de partilhar essas descobertas.
No comboio, de dia, aproveito para olhar através dos sujos vidros, que não se abrem jamais, verificando que lá fora a paisagem segue monótona e repetitiva embora, estando-se alerta por períodos longos de tempo, surja um ou outro retoque de considerável beleza nesta pintura desbotada pelas marcas inevitáveis da passagem do tempo na vida das janelas.
As maiores emoções concentram-se, pois, nos momentos de paragem nas estações, variáveis entre dois e vinte minutos, onde é possível adquirir comida caseira saborosa e barata – como uns pequenos pastéis de couve, de batata ou de arroz e ovo – ou ainda legumes frescos, bebidas ou iogurtes, tudo vendido quase invariavelmente por senhoras de respeitável idade mas grande vigor. Aqui sim, há vida, burburinho, azáfama, pessoas tentando fazer negócio com clientes de passagem, passageiros tentando abastecer-se de víveres de subsistência para mais umas horas a bordo, momentos de agitação.
Mas o curioso é que o tempo acaba por passar surpreendentemente depressa pelo que a chegada a Irkutsk, embora bem-vinda, não constitui qualquer espécie de alívio. Estou bem. E o Lago Baikal aqui tão perto…
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.
No mês de Agosto de 1981 fiz uma viagem de comboio partindo de Santa Apolónia (Lisboa ) e passei pelos seguintes países : Espanha, França, Suíça, Liechtenstein, Áustria, Checoslováquia, Polônia, Hungria, Roménia, Jugoslávia, Bulgária, Grécia, Turquia, Luxemburgo e Inglaterra.
Esta viagem demorou 31 dias permanecendo 2 dias em Bratislava, 4 dias em Katowice, 2 dias em Budapeste, Bucareste, Sófia, Istambul e Londres e 1 dia no Luxemburgo.
Ao contrário da minha primeira viagem de Inter-rail em que regressei a Portugal pelo sul de França, parando em Nice, Barcelona e Madrid, na segunda viagem de Inter-rail parei em La fregeneda, que é a última estação espanhola antes de Vilar Formoso e fui de automotora de La Fregeneda a Barca de Alva e daqui até ao Porto seguindo o rio Douro vinhateiro.