Passo os antípodas de Portugal, deixando para trás as águas infestadas de criaturas marinhas do Bornéu, a organização imaculada de Singapura, o misticismo da ilha de Bali, o sorriso meigo das crianças timorenses e, por fim, a vastidão do outback australiano. Dirijo-me agora para a América do Sul e, a partir deste momento, estarei cada vez mais próximo de casa.
A caminho da América do Sul, deixava para trás mais uma fase desta volta ao mundo. Das águas transparentes de Sipadan ao calor humano de Timor-Leste, da espiritualidade da ilha de Bali ao coração semidesértico da Austrália, altura para um novo balanço, antes de seguir para o último continente que calcorrearei nesta viagem.
Lugares
Tive a sorte de passar por lugares verdadeiramente extraordinários. A começar por Sipadan. Quem tem viajado comigo, desse lado, sabe que tenho uma paixão recente: mergulhar. E Sipadan foi o lugar perfeito para incendiar ainda mais esse ardor. Tartarugas, tubarões de recife, enormes barracudas e mantas gigantes voando no azul do mar, foram algumas das criaturas de porte respeitável que pude observar de perto. Ainda na Malásia, convivi com descendentes de portugueses e descortinei que a língua de Camões anda – como seria de esperar – moribunda por aquelas paragens. Deliciei-me com uma Singapura diferente das ideias preconcebidas de ser apenas um abastado centro financeiro e um paraíso para consumistas compulsivos. Vivi e senti a espiritualidade balinesa, participando numa intensa cerimónia de purificação do corpo e da alma e, uma vez mais, mergulhei nos mares envolventes à ilha. E deleitei-me com a vastidão do outback australiano, onde as paisagens mudam lentamente sem porém cansar o olhar. Antes disso, aterrei em Timor-Leste, naquele que era um dos momentos mais ansiados desde que planeei embarcar nesta jornada planetária.
Finalmente em Timor-Leste
Muito me emocionei com a luta timorense pela autodeterminação. Chorei de raiva com o massacre de Santa Cruz, organizei seminários na Universidade do Minho para despertar consciências, cerrei os dentes ao escrever poemas sobre a causa timorense e participei em vigílias e desfiles pacíficos, no Porto e em Braga. E não dormi durante dias, de ouvido colado à TSF, durante a fantástica emissão especial que os profissionais daquela estação ofereceram aos portugueses, por altura do referendo de 1999. Na verdade, não há nada de racional que me ligue a Timor-Leste mas, por alguma razão que desconheço, a causa sempre me tocou profundamente. Daí que, aterrar em Díli e percorrer parte da mais nova e talvez mais pobre nação do planeta, tenha sido um dos momentos mais intensos de toda esta viagem.
Tenho esperança que Timor-Leste venha a ser um país próspero. A médio prazo. A terra em que o crocodilo se transformou precisa de tempo. Tem um enorme potencial, faltará talvez suficiente massa cinzenta. E há algo mágico no rosto dos mais novos. Os timorenses são um povo sofrido, mas as suas crianças são as mais alegres e meigas com quem já convivi. Como já aqui escrevi, “se a riqueza de um país se medisse pelo encanto dos mais novos, Timor-Leste seria a mais próspera nação do planeta”.
Algo mais sucedeu em Timor-Leste durante a minha permanência. Por casualidade, tenho estado em alguns lugares na altura em que acontecem problemas de menor ou maior gravidade. Como o tsunami, por exemplo. Desta vez, em Timor-Leste, a igreja católica tinha organizado uma manifestação por tempo indeterminado, exigindo a demissão do primeiro-ministro Mário Alkatiri. O ambiente em Díli andava tenso. Numa noite, um par de portugueses foi espancado e massacrado psicologicamente, numa espécie de tribunal popular ao melhor estilo inquisitório. Informei o jornal Público do sucedido, trocámos impressões, e assim surgiu mais uma oportunidade de experimentar algo novo: escrever uma notícia (ver Público de 01.maio.05). Algo muito diferente do registo crónica a que estou acostumado.
Antevisão de um regresso anunciado
É inevitável: começo a pensar no regresso a casa. Não por saudades imensas, não por estar ansioso por terminar esta epopeia – longe disso. Simplesmente porque passaram-se já muitos meses, o regresso aproxima-se e, no final desta terceira fase da viagem, deixei para trás os antípodas de Portugal. Começo a pensar no que fazer com todo o material que fui recolhendo por esse mundo fora, começo a pensar em formas de rentabilizar o investimento material e temporal, enfim, começo a pensar – como se costuma dizer – no futuro.
Quando regressar, estou certo de que voltarei a um lugar em que pouco ou nada mudou. O país terá um renovado governo mas as tricas políticas serão as costumeiras. Um qualquer reality show terá honras de prime-time e será líder de audiências televisivas. Verei as mesmas pessoas sentadas nos cafés de sempre e encontrarei os mesmos amigos que terão poucas histórias para contar. Conhecerei um ou outro novo descendente, é certo, mas pouco mais. A vida tende a rolar insossa quando se está demasiado tempo num mesmo espaço. É o imutável ritmo dos hábitos quotidianos a que, em tempos, também me acomodei. Ao contrário do que acontece quando se percorre parte do mundo de mochila às costas e sentidos despertos. A cada passo uma nova experiência, um curioso costume, uma inesperada amizade. A cada esquina um novo sorriso, um distinto sabor, um som apaixonante. A cada nova descoberta, um forte engrandecimento pessoal, satisfação, felicidade. A vida na estrada é estimulante e variada e sedutora.
Falta ainda percorrer a América do Sul e provavelmente fazer uma incursão a alguns países da América Central. Mas é um dado adquirido que, dentro de alguns meses, voltarei a Portugal. Profissionalmente, não sei que rumo a minha vida irá tomar, mas estou certo de que regressarei com os horizontes alargados, enriquecido com vivências inolvidáveis, possuidor de um autoconhecimento nunca antes alcançado. Voltarei confiante. O futuro está longe de me assustar.
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.