Súmula da terceira parte da viagem (VM #49)

Por Filipe Morato Gomes

Viagens: Sudeste Asiático - Volta ao Mundo

Passo os antípodas de Portugal, deixando para trás as águas infestadas de criaturas marinhas do Bornéu, a organização imaculada de Singapura, o misticismo da ilha de Bali, o sorriso meigo das crianças timorenses e, por fim, a vastidão do outback australiano. Dirijo-me agora para a América do Sul e, a partir deste momento, estarei cada vez mais próximo de casa.

A caminho da América do Sul, deixava para trás mais uma fase desta volta ao mundo. Das águas transparentes de Sipadan ao calor humano de Timor-Leste, da espiritualidade da ilha de Bali ao coração semidesértico da Austrália, altura para um novo balanço, antes de seguir para o último continente que calcorrearei nesta viagem.

Lugares

Mergulhando nas águas de Sipadan, ao largo do Bornéu, Malásia
Mergulhando nas águas de Sipadan, ao largo do Bornéu, Malásia

Tive a sorte de passar por lugares verdadeiramente extraordinários. A começar por Sipadan. Quem tem viajado comigo, desse lado, sabe que tenho uma paixão recente: mergulhar. E Sipadan foi o lugar perfeito para incendiar ainda mais esse ardor. Tartarugas, tubarões de recife, enormes barracudas e mantas gigantes voando no azul do mar, foram algumas das criaturas de porte respeitável que pude observar de perto. Ainda na Malásia, convivi com descendentes de portugueses e descortinei que a língua de Camões anda – como seria de esperar – moribunda por aquelas paragens. Deliciei-me com uma Singapura diferente das ideias preconcebidas de ser apenas um abastado centro financeiro e um paraíso para consumistas compulsivos. Vivi e senti a espiritualidade balinesa, participando numa intensa cerimónia de purificação do corpo e da alma e, uma vez mais, mergulhei nos mares envolventes à ilha. E deleitei-me com a vastidão do outback australiano, onde as paisagens mudam lentamente sem porém cansar o olhar. Antes disso, aterrei em Timor-Leste, naquele que era um dos momentos mais ansiados desde que planeei embarcar nesta jornada planetária.

Finalmente em Timor-Leste

Muito me emocionei com a luta timorense pela autodeterminação. Chorei de raiva com o massacre de Santa Cruz, organizei seminários na Universidade do Minho para despertar consciências, cerrei os dentes ao escrever poemas sobre a causa timorense e participei em vigílias e desfiles pacíficos, no Porto e em Braga. E não dormi durante dias, de ouvido colado à TSF, durante a fantástica emissão especial que os profissionais daquela estação ofereceram aos portugueses, por altura do referendo de 1999. Na verdade, não há nada de racional que me ligue a Timor-Leste mas, por alguma razão que desconheço, a causa sempre me tocou profundamente. Daí que, aterrar em Díli e percorrer parte da mais nova e talvez mais pobre nação do planeta, tenha sido um dos momentos mais intensos de toda esta viagem.

Pausa na caminhada pelo Kings Canyon, Austrália
Pausa na caminhada pelo Kings Canyon, Austrália

Tenho esperança que Timor-Leste venha a ser um país próspero. A médio prazo. A terra em que o crocodilo se transformou precisa de tempo. Tem um enorme potencial, faltará talvez suficiente massa cinzenta. E há algo mágico no rosto dos mais novos. Os timorenses são um povo sofrido, mas as suas crianças são as mais alegres e meigas com quem já convivi. Como já aqui escrevi, “se a riqueza de um país se medisse pelo encanto dos mais novos, Timor-Leste seria a mais próspera nação do planeta”.

Algo mais sucedeu em Timor-Leste durante a minha permanência. Por casualidade, tenho estado em alguns lugares na altura em que acontecem problemas de menor ou maior gravidade. Como o tsunami, por exemplo. Desta vez, em Timor-Leste, a igreja católica tinha organizado uma manifestação por tempo indeterminado, exigindo a demissão do primeiro-ministro Mário Alkatiri. O ambiente em Díli andava tenso. Numa noite, um par de portugueses foi espancado e massacrado psicologicamente, numa espécie de tribunal popular ao melhor estilo inquisitório. Informei o jornal Público do sucedido, trocámos impressões, e assim surgiu mais uma oportunidade de experimentar algo novo: escrever uma notícia (ver Público de 01.maio.05). Algo muito diferente do registo crónica a que estou acostumado.

Antevisão de um regresso anunciado

É inevitável: começo a pensar no regresso a casa. Não por saudades imensas, não por estar ansioso por terminar esta epopeia – longe disso. Simplesmente porque passaram-se já muitos meses, o regresso aproxima-se e, no final desta terceira fase da viagem, deixei para trás os antípodas de Portugal. Começo a pensar no que fazer com todo o material que fui recolhendo por esse mundo fora, começo a pensar em formas de rentabilizar o investimento material e temporal, enfim, começo a pensar – como se costuma dizer – no futuro.

Descontraindo no bar de Daly Waters, uma terriola situada no outback australiano
Descontraindo no bar de Daly Waters, uma terriola situada no outback australiano

Quando regressar, estou certo de que voltarei a um lugar em que pouco ou nada mudou. O país terá um renovado governo mas as tricas políticas serão as costumeiras. Um qualquer reality show terá honras de prime-time e será líder de audiências televisivas. Verei as mesmas pessoas sentadas nos cafés de sempre e encontrarei os mesmos amigos que terão poucas histórias para contar. Conhecerei um ou outro novo descendente, é certo, mas pouco mais. A vida tende a rolar insossa quando se está demasiado tempo num mesmo espaço. É o imutável ritmo dos hábitos quotidianos a que, em tempos, também me acomodei. Ao contrário do que acontece quando se percorre parte do mundo de mochila às costas e sentidos despertos. A cada passo uma nova experiência, um curioso costume, uma inesperada amizade. A cada esquina um novo sorriso, um distinto sabor, um som apaixonante. A cada nova descoberta, um forte engrandecimento pessoal, satisfação, felicidade. A vida na estrada é estimulante e variada e sedutora.

Falta ainda percorrer a América do Sul e provavelmente fazer uma incursão a alguns países da América Central. Mas é um dado adquirido que, dentro de alguns meses, voltarei a Portugal. Profissionalmente, não sei que rumo a minha vida irá tomar, mas estou certo de que regressarei com os horizontes alargados, enriquecido com vivências inolvidáveis, possuidor de um autoconhecimento nunca antes alcançado. Voltarei confiante. O futuro está longe de me assustar.

Livro Alma de ViajanteEsta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.

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Filipe Morato Gomes
Autor do blog de viagens Alma de Viajante e fundador da ABVP - Associação de Bloggers de Viagem Portugueses, já deu duas voltas ao mundo - uma das quais em família -, fez centenas de viagens independentes e tem, por tudo isso, muita experiência de viagem acumulada. Gosta de pessoas, vinho tinto e açaí.

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