Balanço Final da Volta ao Mundo – América do Sul (VM #68)

Por Filipe Morato Gomes
Viagem volta ao mundo: ilha Amantaní, Lago Titicaca, Peru

Na hora do regresso, recordo palavras por mim escritas antes de encetar esta odisseia planetária: “Parto com a certeza de deixar para trás motivos suficientes para o não fazer. Mas um sonho tem a força de transformar uma ideia em algo imperativo, inadiável, inquestionável. Aterrorizar-me-ia chegar tarde na vida com a tortura do pensamento: ‘quem me dera ter feito aquela viagem…’” Ainda bem que parti. Valeu a pena.

Ainda bem que parti. Abandonei o conforto de um sofá, a presença da família e dos amigos mas hoje, após catorze meses vagueando pelo mundo, nem por um momento me arrependi da decisão tomada. Valeu a pena.

Geysers de Taito, a 4.200 metros de altitude, Chile
Geysers de Taito, a 4.200 metros de altitude, Chile

A vida na estrada é estimulante, variada e sedutora. A cada passo uma nova experiência, um curioso costume, uma inesperada amizade. A cada esquina um novo sorriso, um distinto sabor, um som apaixonante. A cada nova descoberta, um forte enriquecimento pessoal, satisfação, felicidade. A cada dia, um novo e diferente dia.

No total, foram catorze meses de emoções fortes e muitas descobertas que terminaram quando, 431 dias depois de ter levantado voo em direção a Moscovo, aterrei no Aeroporto Francisco Sá Carneiro, vindo de Caracas. Regressara ao ponto de partida, o globo estava circunscrito. A volta ao mundo tinha terminado.

Voltei com os horizontes imensamente alargados. Voltei enriquecido com vivências inolvidáveis e possuidor de um autoconhecimento nunca antes alcançado. Voltei satisfeito e confiante. E voltei com a reconfortante certeza de saber que, apesar de tudo o que vivi, pouco conheço deste mundo em que habito. Enquanto arquiteto uma próxima viagem, aqui ficam os últimos dos mais marcantes momentos desta volta ao mundo. Aqueles em que calcorreei parte da América do Sul, nos derradeiros meses de viagem.

26 Oásis no deserto
San Pedro de Atacama, Chile, 4 de junho de 2005

Hotel Marith, em Atulcha, Bolívia, totalmente construído com blocos de sal
Hotel Marith, em Atulcha, Bolívia, totalmente construído com blocos de sal

Da janela do autocarro que me transportava para o norte do Chile, as paisagens avistadas eram de uma beleza desoladora. Tudo era castanho, quase imutável, triste mas comovente, a sugerir a superfície lunar que não conheço. Por todo o lado, a terra encontrava-se totalmente quebrada em pedaços devido à escassez de água pluvial. Uma das exceções, San Pedro de Atacama, era um oásis no meio da desolação. Literalmente. San Pedro fica situada numa zona pintalgada de verde, com casas de adobe que conferem um charme especial às suas ruas. O ritmo de vida era lento e preguiçoso, a espelhar o calor abrasador das tardes secas no Deserto de Atacama. Um lugar bonito, a convidar a uns dias de relaxamento no trajecto sul-americano de viajantes de todo o mundo.

27 O branco do sal
Salar de Uyuni, Bolívia, 9 de junho de 2005

Depois das tendas circulares dos nómadas mongóis, do relento no outback australiano e de um sem número de cabanas de madeira edificadas sobre estacas no sudeste asiático, dormir num hotel de sal era algo novo que me aguardava na Bolívia. O Hotel Marith, localizado em Atulcha, às portas da planície de sal de Uyuni, foi o escolhido para o efeito. Era simples mas aconchegante. As paredes eram construídas com blocos de sal. Os bancos e as mesas também. E a cama, com exceção do colchão, igualmente. O próprio chão era uma camada de sal.

Na zona envolvente, quilómetros e quilómetros de um branco lindo e ofuscante, a perder de vista, na maior planície salgada do planeta. Ao percorrer o salar de Uyuni, estava imerso numa monotonia cromática bela e fascinante, naquele que considero um dos locais mais inusitados que tive a oportunidade de trilhar nesta viagem.

28 Tensão
Uyuni, Bolívia, 11 de junho de 2005

Vista de Potosí, Bolívia
Vista de Potosí, Bolívia

Quando cheguei a uma pousada na cidade de Uyuni, disseram-me que os bloqueios de estrada, que começavam a asfixiar a Bolívia depois de várias semanas sem fornecimento de alimentos e combustível, tinham sido levantados. Rejubilei. Depois de dias de incerteza, podia prosseguir para o norte do país. Saí da pousada com a decisão de seguir para Potosí no dia seguinte. Na rua, pessoas corriam desvairadas e homens de farda verde ordenavam aos transeuntes que saíssem dali. Estavam exaltados e agitavam os braços para que corrêssemos numa direcção específica. Segundos depois, ouviu-se um estrondo brutal. Os de verde eram mineiros e tinham acabado de dinamitar a linha de caminhos-de-ferro, do outro lado da rua. Seguiram-se momentos de alguma tensão. Seria sensato prosseguir?

29 Os mineiros do Cerro Rico
Potosí, Bolívia, 13 de junho de 2005

Entrei nas minas do Cerro Rico, nos arrabaldes de Potosí. Estava muito quente. Uma sinistra quantidade de pó circulava no interior dos túneis, tornando o ar praticamente irrespirável. Um corrupio de homens rastejava, corria, empurrava carris com duas toneladas de pedra e minério, içava cestos com duzentos quilos do mesmo, martelava cinzéis abrindo buracos na pedra dura e puxava grossos troncos para servirem de sustentáculos das galerias. Tudo era incrivelmente físico, demolidor. E perigoso. Estávamos a 5.000 metros de altitude e o simples acto de respirar era difícil. Por todas as razões, quem ali trabalhava sabia que, muito provavelmente, haveria de morrer nas minas ou por causa delas. Mas tinham um ar nobre, aqueles homens. Não inspiravam pena, mas respeito.

30 Costumes
Ilha Taquile, Peru, 19 de junho de 2005

Desfiles durante o Inti Raymi, Praça das Armas, Cuzco, Peru
Desfiles durante o Inti Raymi, Praça das Armas, Cuzco, Peru

Na segunda-feira em que cheguei a Taquile, uma ilha localizada na secção peruana do Lago Titicaca, era o dia em que toda a comunidade se reunia para discutir os seus problemas. Por esse motivo, os habitantes trajavam a preceito. Todos envergavam roupas tradicionais. Os homens, de branco e preto. As mulheres, mais coloridas. Era um cenário belo e genuíno. Roupas feitas pelos próprios, porque os homens e mulheres de Taquile são mestres na tecelagem. E possuem também outras particularidades interessantes. Como a obrigatoriedade de, antes do casamento, duas pessoas viverem juntas por um período de dois anos para avaliação mútua, embora com a proibição de terem filhos. Sábia precaução. É que, em Taquile, a partir do momento que um casal efetive o casamento, o mesmo torna-se irreversível. O divórcio é um conceito que não existe na comunidade.

31 A celebração
Cuzco, Peru, 24 de junho de 2005

Cheguei a Cuzco na altura em que decorria o Inti Raymi, um tributo ao astro-rei, o criador de todas as coisas para a civilização Inca. Era uma semana de desfiles contínuos, uma cidade inteira nas ruas, em festa permanente, numa enorme mobilização coletiva. Um povo orgulhoso da sua identidade. No final, uma teatralização com centenas de figurantes envergando vestes esplendorosas, copiadas do período Inca. Eram estes os condimentos para o Inti Raymi, a maior celebração popular de Cuzco, uma cidade lindíssima que os Incas construíram com a forma de um puma. O auge das cerimónias teve lugar numa colina onde ainda pontificam as ruínas de Saqsaywaman, a cabeça do puma idealizada pelos Incas. Uma teatralização grandiosa, muito solene e de enorme bom gosto. Foi a mais impressionante festividade que presenciei durante os catorze meses de viagem.

32 A cidade perdida
Machu Picchu, Peru, 27 de junho de 2005

Machu Picchu, Peru
Machu Picchu, Peru

As imagens das ruínas de uma cidade Inca rodeada por pináculos esguios, num misto de verde e cinza, vegetação e pedra, são por demais conhecidas de todos. Por tudo ser tão familiar, estava preparado para a desilusão. Enganei-me. A entrada era feita por um local onde, após uns quantos degraus, se avistava Machu Picchu de um ponto de vista superior. Dei por mim completamente rendido, imóvel, perante a magnificência do que os meus olhos observavam. É um lugar arrebatador, mágico, impressionante. Com um senão, apenas: a média diária de visitantes é demasiado elevada. Consta, aliás, que o monte onde Machu Picchu foi erigida corre o risco de um colapso. E não creio que a massiva presença de turistas ajude a evitar o que parece ser inevitável. Talvez em breve deixe de ser possível visitar tão inolvidável local.

33 O tango
Buenos Aires, Argentina, 5 de julho de 2005

Buenos Aires é uma cidade excecional. A par com Pequim, Hanói e Santiago, foi das grandes metrópoles que mais me surpreenderam. É uma cidade cheia de vida, de gente elegante – pretensiosa, dirão por todo o resto da Argentina -, com grande animação e oferta cultural. E é também a capital mundial do tango. Dos sons tradicionais de Carlos Gardel. Mas também do electrotango, do narcotango e de outros sons de cariz eletrónico que entraram definitivamente no meio musical porteño.

Os sons ouvem-se por todo o lado. Na rua, nas rádios, nas lojas, nos cafés. Estando em Buenos Aires, não há como escapar à poesia de um acordeão. Na verdade, o tango sempre fez parte do quotidiano da capital. Dançar não é coisa de gente velha, saudosista de outros tempos. Das ruas do boémio bairro de San Telmo às milongas em caves escuras espalhadas por toda a cidade, passando pelos cafés chiques como o Tortoni, há tango para todos os gostos e bolsas. Em Buenos Aires o tango é de todos, para todos.

34 Maravilha da Natureza
Cataratas de Iguazu, Argentina, 20 de julho de 2005

Lado argentino das Cataratas de Iguaçú
Lado argentino das Cataratas de Iguazu

Haverá em todo o mundo um punhado de lugares onde, perante a magnitude do que os seus olhos observam, um ser humano é invadido por uma incontrolável sensação de pequenez. Iguaçú é, seguramente, um desses lugares. A Garganta do Diabo e demais quedas de água, o ar carregado de salpicos, a força bruta do rio, o som ininterrupto e poderoso vindo de todos os lados, tudo era deslumbrante nas Cataratas de Iguaçú. Defronte de tão majestosa criação, ali estava eu quedo e mudo, olhando a magia branca das águas revoltas e deixando que os grossos salpicos me encharcassem o corpo e a alma. Estava completamente rendido.

35 Regresso ao passado
Ouro Preto, Brasil, 30 de julho de 2005

Ouro Preto é uma das mais emblemáticas cidades históricas do Estado brasileiro de Minas Gerais. A arquitetura sóbria do seu centro histórico, com ladeiras empedradas e casarios coloniais bem preservados, os telhados, a obra do escultor “Aleijadinho” espalhada pela localidade e o ambiente boémio e descontraído de uma cidade com muitos estudantes, tudo contribui para o charme de Ouro Preto.

Como sempre aconteceu quando mudava de poiso, não fazia ideia de onde iria pernoitar em Ouro Preto. Acabei na república de estudantes Sinagoga. E assim, apelidado de “Manuel Joaquim Pereira” desde o primeiro instante, pude conviver com o quotidiano de uma animada república, em dias recheados de música, alegria, noitadas, muita diversão e, claro, algum estudo. Um delicioso regresso aos tempos académicos.

36 Sem lei
Itaúnas, Espírito Santo, Brasil, 7 de agosto de 2005

Amanhecer no Amazonas, Brasil
Amanhecer no Amazonas, Brasil

Foi na pequena Itaúnas que ouvi a incauta confissão. Estava nas mesas exteriores de um pacato bar da povoação, conversando com habitantes locais. Vivia-se a ressaca do mais importante festival de forró do Espírito Santo, acontecimento que em muito contribui para o título de capital capixaba do forró que Itaúnas ostenta. Tinham ocorrido inúmeros assaltos durante a semana do festival e a população não estava satisfeita. Principalmente por saberem que alguns dos assaltantes eram filhos da terra. A tal ponto que os habitantes terão decidido tomar em mãos a resolução do problema. “Dois já morreram”, disse-me um dos parceiros de esplanada, antes de acrescentar: “Os outros dois já estão encomendados… em quinze dias”.

37 A viagem de barco
Amazonas, Brasil, 2 de setembro de 2005

Navegar pelo Rio Amazonas num barco de passageiros era algo que, desde há muito, fazia parte do meu imaginário de viajante planetário. Foram apenas três dias de navegação, entre Belém e Santarém, mas o suficiente para perceber estar numa região muito carenciada do Brasil. Reflexo dessa pobreza, ao longo de boa parte do trajeto, pirogas com mulheres e crianças de tenra idade aproximavam-se do barco, à sua passagem, na expectativa de lhes serem atirados algum víveres. Roupas, brinquedos, bolachas, o que fosse. Lembro-me de um miúdo numa piroga recolher um saco da água e uma velhota, talvez sua avó, na mesma piroga, acenar para o barco agradecendo ao casal que lhes tinha atirado os víveres. Havia passageiros que vinham, de facto, preparados com oferendas para essa gente humilde, num acto de genuína solidariedade. Depois do que vi, peguei em duas t-shirts novas que me tinham oferecido em Belém. Estão agora, provavelmente, no corpo de uma dessas crianças da Amazónia.

Hospitalidade global

Altiplanos andinos, Bolívia
Altiplanos andinos, Bolívia

Sou, desde há vários anos, membro activo do Hospitality Club, uma rede de viajantes dispostos a ajudar outros viajantes, nomeadamente facultando, dentro das possibilidades de cada um, alojamento nas suas próprias habitações. Uma rede que funciona na base da confiança mútua e que, pela sua natureza, proporciona um estreito contacto com a vida e hábitos locais (por oposição à estadia num hotel), enriquecendo sobremaneira as experiências de viagem. Durante esta volta ao mundo, beneficiei da hospitalidade desinteressada de membros em Moscovo, Pequim, Singapura, Darwin, Sydney, Santiago e La Serena. Uma forma diferente de conhecer as urbes do planeta.

Outros lugares excecionais

– Santiago, Chile
– Altiplanos andinos, Chile e Bolívia
– Arequipa, Peru
– Colonia Carlos Pellegrini, Argentina
– Caraíva, Bahia, Brasil

Livro Alma de ViajanteEsta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.

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Filipe Morato Gomes

Autor do blog de viagens Alma de Viajante e fundador da ABVP - Associação de Bloggers de Viagem Portugueses, já deu duas voltas ao mundo - uma das quais em família -, fez centenas de viagens independentes e tem, por tudo isso, muita experiência de viagem acumulada. Gosta de pessoas, vinho tinto e açaí.

1 comentário em “Balanço Final da Volta ao Mundo – América do Sul (VM #68)”

  1. Boa tarde. Achei muito interessante a sua experiência da volta ao mundo em 14 meses.

    Quantos países você visitou? Foram todos?

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