Já levava alguns meses de viagens quando ocorreu o tsunami no sudeste asiático. No momento do maremoto – que marcou decididamente esta viagem – estava no Laos, um país que escapou à tragédia. Mas, vestindo a pele de repórter fotográfico, regressei à Tailândia e passei pelo Sri Lanka, onde assisti ao inimaginável. Foram os momentos mais difíceis numa viagem recheada de outros instantes marcantes mas agradáveis.
O sudeste asiático foi a área do globo a que dediquei mais tempo durante os catorze meses da viagem. Porque, sendo oriundo da Europa ocidental, nessa região tudo é novo e fascinante. As pessoas, as culturas, os valores, a arquitetura, os sabores. Ao viajante, imerso numa variedade inesgotável de distintas experiências, são proporcionados momentos de descoberta permanente. A surpresa é um elemento omnipresente. Porque se encontram povos com modos de vida distintos e muito diversificados. Porque algumas tradições ancestrais ainda se mantêm vivas. Porque novas formas recortam as paisagens que os olhos observam. Porque a gastronomia é estranha, desafiante e, quase sempre, deliciosa. Riquíssima. E porque quase nada acontece como estamos acostumados na Europa.
Creio como certo, aliás, que a diferença é uma das coisas que mais fascínio produz num viajante. A novidade atrai como a força de um íman. Espicaça o deslocado. E amedronta, por vezes. Produz adrenalina. Atiça o desejo de conhecimento e combate o comodismo a que por vezes, ao fim de longos meses de vida errante, um viajante tem tendência a sucumbir. A novidade da diferença é o combustível necessário para prosseguir viagem.
Foi por esses caminhos de descoberta que me deixei perder na fase intermédia desta volta ao mundo. Aqui ficam, na segunda parte deste balanço, alguns dos momentos mais marcantes ocorridos durante o período em que fui do sudeste asiático até à Oceânia, e antes de rumar ao continente americano.
13 Bom exemplo
Mai Sariang, Tailândia, 9 de dezembro de 2004
Conheci uma agência de ecoturismo com reais preocupações sobre o impacto que os visitantes causam em comunidades minoritárias. Uma raridade num país tão turisticamente explorado como a Tailândia. A agência organizava caminhadas pelas montanhas na região de Mai Sariang, por percursos diversificados, de forma a não visitarem as mesmas aldeias com frequência. Além disso, parte dos seus lucros era destinada a um fundo comum a ser utilizado pelos aldeões. Em forma de micro empréstimos para quando, por exemplo, alguém sem recursos necessitar de tratamentos médicos na cidade mais próxima. Sabe-se que a linha que separa os aspetos benéficos dos nocivos, nesta convivência entre turistas e indígenas, é muito ténue. Mesmo sendo uma matéria para a qual não há verdades absolutas, fica, pelo menos, o conforto de saber que ainda há quem, na indústria do turismo, se preocupe com o problema.
14 À espera da liberdade
Ban Nai Soi, Tailândia, 15 de dezembro de 2004
Encontram-se pessoas surpreendentes nos mais improváveis recantos do mundo. A jovem Maria José – como se apresentou – foi um desses casos. Tinha apenas dezanove anos e pertencia à minoria étnica Karen de pescoço comprido, refugiados birmaneses que procuram uma vida melhor em solo tailandês. Vivia na pequena aldeia de Ban Nai Soi, uma espécie de campo de detenção encapotado, no norte da Tailândia, de onde os habitantes não podem sair. Cruzar as fronteiras da aldeia era o seu maior sonho. Um sonho, apenas, mas de improvável concretização. Apesar disso, Maria José falava com relativa fluência inglês, francês, castelhano, basco e catalão, para além da sua língua materna. Aprendeu tudo “com os turistas”. À espera do dia em que for livre.
15 O drama humano
Khao Lak, Tailândia, 29 de dezembro de 2004
Do ponto de vista emocional, foi a mais difícil experiência por que passei. Nunca serei capaz de transmitir por palavras o ambiente que se vivia na Tailândia e, posteriormente, no Sri Lanka, depois do tsunami. O cheiro a morte que emanava do solo, a brutalidade da devastação, a dor e desespero dos sobreviventes, tudo era demasiado real. E cruel. Jamais qualquer vocábulo será capaz de fazer jus ao que ia na alma de quem procurava um familiar ou amigo por entre um amontoado de corpos deformados. Foi o momento mais doloroso destes catorze meses de viagem.
16 Lição de vida
Galle, Sri Lanka, 2 de janeiro de 2005
Circulava de automóvel quando me apercebi de uma família muito atarefada, no meio dos escombros daquilo que fora a sua casa antes da passagem do tsunami. Alguns membros da família tinham sido mortos, outros continuavam dados como desaparecidos. Em redor dos seus escombros, tudo era destruição e sofrimento. Apesar de nada terem, pediram-me água, apenas água. Foi quando reparei no mais jovem elemento da família. Era uma criança de uns quatro ou cinco anos, não mais. Procurava tijolos intactos, por entre uma amálgama de restos de madeira, ferros e pedra. Recolhia-os e entregava-os ao seu pai, para que pudessem, tão breve quanto possível, construir um tecto para dormirem. E conseguia sorrir. Uma das maiores lições de vida que recebi na minha existência.
17 A ternura de um instante
Nyaungshwe, Myanmar, 16 de janeiro de 2005
Em muitos dos lugares por onde fui passando, sair das estradas principais e, num impulso inexplicável, seguir sem mapa e sem destino por caminhos menores e desconhecidos proporcionou-me, não raras vezes, momentos inesquecíveis. Como naquele dia em que, nos arredores de Nyaungshwe, Myanmar, entrei de bicicleta num desses trilhos de terra batida. Um homem estava à porta de sua casa, uma humilde palhota de madeira erguida sobre estacas. Cumprimentei-o. Convidou-me a entrar, para ver algo. Lá dentro, a sua mulher acarinhava o primeiro filho do casal, recém-nascido de apenas um dia de idade. Uma xícara de chá aqueceu a conversa possível entre pessoas sem uma língua comum. O bebé feito casulo, embrulhado numa pequena manta, e respectivos pais sentados no chão em volta de um braseiro, é uma das mais afetuosas imagens que, ainda hoje, retenho na memória.
18 Resistência
Mandalay, Myanmar, 21 de janeiro de 2005
O rés-do-chão da casa tinha sido transformado numa pequena sala de espectáculos. As paredes encontravam-se cobertas com marionetas, fotografias da Nobel da Paz Aung San Suu Kyi e recortes de jornais internacionais sobre a história da trupe. Na fachada, uma placa anunciava: “Moustache Brothers – comediantes, palhaços, arlequins”. Sentei-me no exterior, em redor de um braseiro, à conversa com elementos da família. Estava num dos raros lugares urbanos, em Myanmar, onde se podia falar livremente sobre política. Assisti ao espectáculo, uma espécie de sátira política de questionável qualidade. Mas isso era o menos relevante. “Nunca desistiremos; a democracia há-de chegar a Myanmar”, disse-me, no final, um dos irmãos de bigode.
19 A magia dos templos
Bagan, Myanmar, 25 de janeiro de 2005
Bagan é a mais visitada região de Myanmar. Por causa dos mais de dois mil templos que se espraiam pelas margens do Rio Ayeyarwady. Mas havia demasiados turistas nos mais imponentes, elegantes e bem preservados templos, como em Shwezigon ou Ananda. Para deles fugir, segui de bicicleta, sem rumo definido, por caminhos de terra solta. Foi quando um homem me convidou a ver umas pinturas efetuadas sobre areia. Estava sentado à porta do minúsculo templo de Tayok Pye, raramente visitado por forasteiros: “cinco ou seis pessoas por dia vêm a Tayok Pye”, disse o artista-vendedor. O templo parecia um paralelepípedo sem graça quando o homem apontou para uma escadaria estreita e escura. “O sol põe-se em vinte minutos, podes subir”, sugeriu. Subi e lá fiquei, apreciando a imensidão de templos que pintalgavam a paisagem e aguardando o mágico instante em que o sol se escondeu por debaixo da linha do horizonte. Um momento de paz.
20 A mentira
Koh Tao, Tailândia, 7 de fevereiro de 2005
Disseram-me que havia uma mentira muito comum entre os viajantes que se deslocam a Koh Tao. Algo que a maioria dos turistas dizia frequentemente e nunca cumpriam. Como o brasileiro Fernando, instrutor de mergulho que chegou à ilha quatro anos atrás, de férias, e de lá não mais saiu. “Amanhã vou embora”, eis a mentira. Compreendi. Em Koh Tao, a vida corria prazenteira durante o dia e animada noite dentro. Uma combinação de praias bonitas, clima ameno e escolas de mergulho de bom nível, e noites acolhedoras em bares montados na areia das praias, com velas e música ao vivo, bebidas baratas, muito namoro e gente bonita. E, acima de tudo, excepcional ambiente a todas as horas, todos os dias. Eis os motivos da popularidade da ilha da “tartaruga”. Também eu menti, por uns dias.
21 Os mergulhos
Sipadan, Bornéu, Malásia, 17 de março de 2005
Descobri uma nova paixão nesta viagem. Algo que me abriu, passe o lugar-comum, as portas de um novo mundo. O mergulho. Em Sipadan, uma ilha ao largo da parte malaia do Bornéu, vivi o auge dessa paixão. Mergulhei com tartarugas e inofensivos tubarões de recife. Avistei enormes barracudas, muitas espécies de exóticas criaturas, como o peixe-crocodilo, o peixe-leão e o peixe-papagaio e fui ainda presenteado com algo inolvidável. A imagem de três mantas gigantes voando pela imensidão do oceano, até se diluírem completamente nos tons de azul das águas. Com visibilidade muito acima dos vinte metros, foram dias de descoberta permanente.
22 Cerimónia religiosa
Ubud, Bali, Indonésia, 29 de março de 2005
Ubud é um lugar místico. Uma cidade de arquitetura rica, bonita e original. Com muitos templos. Quando lá estive, decorria uma importante cerimónia religiosa num dos mais importantes templos da cidade. Vesti um sarong e entrei no recinto. As mulheres carregavam, na cabeça, tabuleiros circulares com oferendas para os espíritos. Eram enormes bandejas com vários níveis de frutas, doces e outros alimentos que não consegui descortinar. Enquanto homens e mulheres lavavam as mãos, o cabelo e a cara, antes de colocarem grãos de arroz na testa, como símbolo de prosperidade, as oferendas eram igualmente “purificadas” com “água sagrada”. No final, cada mulher recolhia o seu tabuleiro e dirigia-se para casa, para partilhar os alimentos “purificados” com toda a família. Um privilégio assistir a tão simbólica celebração.
23 As crianças
Lori, Timor-Leste, 18 de abril de 2005
As faces de tez escura, os sorrisos e as gargalhadas espontâneas, os dentes imaculadamente brancos, os olhos negros que falam sem palavras, tudo é incrivelmente belo nas crianças de Timor-Leste. Até mesmo a vergonha de algumas. Recordo, com especial carinho, várias imagens da minha passagem por Timor-Leste. E muitas têm crianças como protagonistas. Uma pequena ternura que conheci em Baucau, de olhar hiper-expressivo mas tão envergonhada que não proferiu palavra. Uma jovem beldade que fotografei em Abafala, com o mais radiante dos sorrisos. E as macacadas, próprias da idade, com que um grupo de crianças me recebeu na aldeia de Lorí. Momentos de alegria contagiante, a fazer esquecer que estava num dos mais pobres países do planeta.
24 A manifestação
Díli, Timor-Leste, 21 de abril de 2005
Estava em Timor-Leste quando decorria o mais caricato dos protestos a que já assisti. Uma fila de cruzes, santos, Cristos e Nossas Senhoras delimitava o início da manifestação. Havia faixas com inscrições em tétum, clamando por “justiça” e chamando “ditador” ao primeiro-ministro, Mário Alkatiri. Atrás das faixas e da fila de imagens estavam os manifestantes. Oravam, cantavam e aplaudiam inflamados discursos anti-Alkatiri. Durante vários dias, mantiveram intransitável uma das principais avenidas de Díli. Protestavam contra o facto do governo pretender tornar facultativo o ensino da religião e moral nas escolas. Mas tudo aparentava ter origem numa clara manipulação de consciências. E a confusão de ideias era enorme. Um taxista teve, a propósito, uma elucidativa tirada: “O ensino da religião tem que ser obrigatório, senão isto é uma ditadura”… Falta dizer que o protesto era organizado pela igreja católica.
25 O arco-íris
Outback, Austrália, 10 de maio de 2005
O outback australiano é uma região magnífica. Uma área de paisagens secas, brutas e, simultaneamente, de uma beleza ímpar. Foi lá que vivi os momentos mais espetaculares do meu curto périplo pela Oceânia. No topo do Kings Canyon, o olhar alcançava quilómetros e quilómetros de planícies com escassa vegetação e onde predominavam os tons pastel, avermelhados. Os mesmos tons que encontrei em Uluru, a rocha sagrada do povo Anangu. Quando, ao entardecer, e após a frustração de uma chuvada fora de época, avistei esse pedaço de pedra que brota da planura do solo, fui presenteado com um momento mágico. Um abraço comovente. Aquele com que um duplo arco-íris envolveu Uluru.
Outros lugares excecionais
– Pai, Tailândia
– Koh Lanta, Tailândia
– Ilhas Perhentian, Malásia
– Terras altas de Cameron, Malásia
– Coober Pedy, Austrália
– Sydney, Austrália
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.