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Rumo a Sul (De Cabo a Cabo #03)

Por Mateus Brandão

De Cabo a Cabo, uma viagem de Mateus Brandão

A bússola aponta para sul. Sinto-me como que uma ave migratória. Para trás ficou o Km 0 mas também o frio e o outono que por ali há muito se instalou, colorindo de amarelos e vermelhos as folhas das árvores, que ao sopro do vento se vão desprendendo e voando, elas também, livremente. Rumo a sul. Ao encontro das paisagens quentes, como uma ave.

Se foi difícil conseguir boleia para aqui chegar ao Cabo Norte, não será mais fácil sair. São 7 da manhã mas não consigo ficar mais na tenda com este frio. Desmonto tudo e vou procurar boleia. Há pouco dei pela chegada de um autocarro com turistas. Talvez eles me possam levar para baixo.

O tempo passa e o vento parece querer aumentar. O autocarro não me dá boleia e eu começo a ficar farto de esperar. O ciclista alemão que havia conhecido na noite anterior também se levantou e prepara-se para fazer o caminho contrário. Juntos fazemo-nos à estrada para sul mas, com este vento, não é fácil para ele acompanhar-me e resolve avançar. Caminho sozinho durante pouco mais de uma hora e não há carro que pareça querer dar-me boleia. Na verdade, também não são muitos os que por aqui passam mas, como a sorte não me quer abandonar, sou finalmente bafejado por ela e pouco depois estou no banco de trás do carro de um casal estónio a trabalhar na Finlândia e que para lá se dirige. Poder-me-ão levar, de uma vez só, até Karasjok, onde pretendo ficar por duas noites antes de deixar a Noruega. A sorte está, afinal, comigo.

A certa altura fico com a sensação de que se vão enganar por quererem seguir por uma outra estrada que não aquela que leva à Finlândia. Deixo o carro e aproveito a presença de uma loja de conveniência para fazer algumas compras para o almoço. Não tenho ideia de quanto tempo terei lá perdido mas, quando volto à estrada, o primeiro carro a parar é novamente do casal estónio que, agora sim, parece estar no caminho certo.

Embrenhado na Reserva Natural do Kevo, Finlândia

Já na Finlândia, chego tarde à Reserva Natural do Kevo. Apesar da distância ser curta desde Karasjok, não foi nada fácil chegar até Karasjok. Confesso ser um pouco impaciente e, após alguns minutos sem carros à vista, resolvo caminhar. Até à fronteira não houve qualquer problema, mas daí em diante só consigo boleia quando já estou a pouco mais de 2Km do destino – há um camião que para. O condutor vai ao telemóvel e a distância é tão curta que quando ele desliga eu só tenho tempo de dizer que é ali que quero ficar. Desço do camião e embrenho-me na floresta.

Cabo Norte
Km 0 – ponto de partida

Tendo começado tarde, hoje só farei 15 km, o suficiente para penetrar reserva adentro e avistar renas e lagos enormes, aperceber-me do outono que aqui chega mais cedo pintando o cenário de cores amarelo e vermelho… e um silêncio indescritível.

A rota está impecavelmente bem cuidada e devidamente assinalada, não só ao longo do percurso como dos locais de acampamento onde é sempre possível encontrar lenha e um local próprio para fazer a fogueira, instalação sanitária provida de compostagem bem como, em alguns casos, pequenas cabanas onde é possível pernoitar, possuindo no seu interior uma salamandra ou local para fogueira. Tudo está impecável.

A manhã do segundo dia nasce com uma ténue neblina. O sol ainda mal espreita por detrás da copa das árvores e já eu estou de volta ao trilho. O objetivo é fazer perto de 40 km até uma zona de acampamento, a apenas 10 km da saída. Esta parte do percurso é mais difícil e técnica, com travessias de rio, subidas íngremes e descidas complicadas, mas nada que não seja possível fazer num dia.

Ainda nos primeiros quilómetros, volto a ter oportunidade de avistar renas e, do cimo das montanhas, contemplar a vastidão do lugar, colorido por uma paleta de cores outonais. Sentir o frio da manhã que se infiltra pelos pulmões e me refresca…

Não tarda muito até que surja, para meu deslumbre, o ponto mais alto da caminhada; o início do desfiladeiro. Desta posição elevada é possível ver o correr do rio no fundo do vale e ouvir a água que escorre montanha abaixo para o alimentar. Esta é a imagem que me trouxe cá. A vertente noroeste do desfiladeiro está repleta de vegetação, ao passo que o outro lado apresenta zonas escarpadas e rochosas. O rio alarga e volta a estreitar e com um nevoeiro persistente em pano de fundo. Fico verdadeiramente espantado com a magnitude e beleza do local. Hora de prosseguir. O terreno é agora a descer, o que indica não estar longe a primeira travessia de rio.

Rio Kevojoki
Rio Kevojoki, Finlândia

Ao chegar junto a um dos afluentes que alimenta o desfiladeiro, há uma corda a unir as duas margens e a ela estão penduradas, através de pequenas roldanas, outras cordas que servem de apoio para a travessia. Descalço as botas e as meias, uno os atacadores através de um nó direito e ponho-as à volta do pescoço. Para facilitar a travessia, decido pendurar a mochila numa das cordas de apoio através de um pequeno mosquetão – que na verdade não passa de um porta-chaves. A água mal cobre os tornozelos, mas a forte corrente, a água gélida e as pedras escorregadias dificultam a passagem. Pouco depois, estou do outro lado. Como esta haverá ainda mais três travessias, sendo que a última apresenta uma maior extensão e profundidade de rio.

Continuo até perto do final do dia. O percurso é bastante acidentado, com zonas de muita rocha e outras em que parece que toda a vegetação foi dizimada por um qualquer fenómeno estranho. Há árvores partidas e tombadas num cenário tão disperso que mais parece ter sido zona de guerra.

Monto tenda junto ao rio. Há uma brisa a anunciar chuva. Faço fogueira e janto chegado a ela até as primeiras gotas resolverem atirar-me para dentro da tenda. Não há muito mais a fazer que não seja dormir e esperar que de manhã o tempo esteja mais favorável.

Mas, ao amanhecer, não há sinais de melhoria. Na verdade, parece estar ainda pior. Vou aguentando na esperança que a coisa passe. Faltam apenas 10 km para o final do trilho, mas a minha intenção é chegar ainda hoje a Inari e acampar por lá, de forma a ficar mais próximo de Rovaniemi, onde tenho o meu próximo “sofá”.

Lago na Reserva Natural do Kevo
Lago na Reserva Natural do Kevo

O tempo vai passando mas a chuva nem por isso. Estou à espera há umas duas horas sem que haja melhorias, pelo que me resolvo a desmontar tudo e fazer-me assim mesmo ao caminho. Se não chegar ao início da tarde à outra ponta do trilho, será ainda mais difícil conseguir boleia até Inari. A chuva não quer mesmo parar. Pouco tempo depois, é chegada a última travessia de rio e esta parece-me a mais complicada. Arregaço as calças o mais que posso mas nem assim evito que se molhem. Seja como for, a chuva tem-se encarregado de me deixar suficientemente ensopado. Os últimos quilómetros são feitos entre dois lagos numa espécie de passadiço de praia. Não só a chuva cai com mais intensidade, como o vento veio fazer-lhe companhia e, não havendo sequer árvores para me abrigar, chego ao fim totalmente encharcado. A paisagem é ainda assim deslumbrante; não fosse o incómodo da chuva, esta talvez fosse uma das partes mais bonitas do trilho.

A caminho de Oulu

Para chegar a Inari tenho ainda de conseguir boleia. Abrigo-me sob o “telhado” das informações do parque, correndo para a estrada de polegar em riste de cada vez que vejo um carro a aproximar-se. Por fim consigo. Mas esta só me leva até uns 100 km mais à frente, deixando-me numa espécie de área de serviço. A chuva cai insistentemente. Volto a repetir a estratégia; abrigado no alpendre de um minimercado, corro para a estrada de cada vez que se aproxima um carro.

Finlândia
À espera de boleia

De Inari sigo para Rovaniemi e posteriormente para Oulu. Pekka, o cientista que me hospeda em sua casa, reside em Oulu por força do trabalho, num rés-do-chão de não mais de 30 metros quadrados. O suficiente para si, diz-me. E ainda acha ter espaço para fazer uma sauna.

De facto, a casa de Pekka faz-me refletir novamente no paradigma português no que à habitação diz respeito. Em Portugal, a procura generalizada por um T3 parece independente de tudo. Como se a casa fosse um processo descontínuo, não associável às diferentes fases da vida.

Talvez o valor da habitação explique isso, mas há muito que tenho a perceção que o lugar que habitamos deve ser o abrigo do nosso quotidiano, num processo mutável e evolutivo. Talvez também o apego a esse espaço nos torne menos recetivos a abandoná-lo e a permitir-nos deslocarmo-nos dentro do próprio país.

Na primeira noite cruzamo-nos com uma estranha tradição estudantil, numa espécie de pedipaper carnavalesco em que os caloiros têm uma série de tarefas a cumprir, enquanto que os velhos alunos se reúnem nesses mesmos pontos, cada grupo com o seu tema e respetiva indumentária, bebendo latas de cerveja que, uma vez vazias, são atiradas para o chão.

Estação de Oulu
Estação de Oulu

Já em Estocolmo, o Nuno me havia explicado que aqui as latas têm tara, como muitas das garrafas de vidro em Portugal, e os nórdicos deixam-nas para serem recolhidas por aqueles que mais necessitam. São comuns as filas nos locais de recolha, por muitas vezes se encontrarem algumas dessas pessoas com enormes quantidades para entrega, que rendem, no caso da Finlândia, 15 cêntimos por lata. Uma forma ecológica e socialmente inteligente de promover a reciclagem e ajudar quem mais precisa.

Não consegui “sofá” em Helsínquia, nem no caminho que a separa de Oulu. Apesar do preço exorbitante dos transportes na Finlândia, as opções escasseiam e vejo-me forçado a gastar o dobro daquilo que tinha estipulado como limite de preço para as deslocações. Viajarei de noite para chegar a Helsínquia pela manhã, onde seguirei no barco para Tallinn. À minha espera estará a primeira visita desta viagem.

De Cabo a Cabo tem por objetivo unir os pontos mais a norte da Europa e mais sul de África, numa viagem em busca das afinidades e multiplicidades dos povos, das suas culturas, crenças e esperanças, das suas singularidades e de como o homem é um ser “pacífico e cooperativo”, como dizia o professor Berger a Paul Theroux durante a sua «Viagem Por África». Com saída de Santa Maria da Feira, Portugal, no dia 28 de agosto de 2011, Mateus Brandão percorreu 20 países em 3 continentes durante 9 meses.

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Mateus Brandão

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