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Cama, chá e roupa lavada nos comboios da Ucrânia (De Cabo a Cabo #05)

Por Mateus Brandão

Comboios na Ucrânia

Durante três semanas, percorri a Ucrânia de lés a lés, um país que tem uma das maiores redes ferroviárias do mundo. O comboio é, pois, o meio de transporte por excelência, sendo possível calcorrear todo o país montado numa dessas carruagens de estilo soviético, bebendo chá de olhos postos na paisagem ucraniana.

Se foi com a moral um pouco em baixo que deixei a Polónia com destino à Ucrânia, já em Varsóvia – depois de ter deixado o amigo Hugo no aeroporto, ainda em Gdansk -, ao procurar na plataforma de embarque o setor onde devo esperar o comboio para Kiev, o entusiasmo renova-se imediatamente ao constatar simplesmente que o mesmo comboio faz serviço até Astana, no Cazaquistão. Fico sempre fascinado por estes comboios de longa distância que demoram dias a encontrar esses destinos exóticos, cruzando fusos horários e fronteiras esquecidas.

Ao entrar no comboio, sinto-me renovado. É uma carruagem ucraniana com compartimentos de quatro camas. Exatamente aquilo que sempre imaginei ser uma carruagem da era soviética; desde logo, a cor azul, sóbria, pintada sobre o ferro da carruagem com letras douradas em relevo, no interior; um tapete comprido estende-se ao longo de todo o corredor, cortinas a meio da janela, toalha sobre a mesa e, para completar, serviço de chá.

Chá nos comboios da Ucrânia
Nos comboios, há água quente sempre disponível para preparar chá

Todas as carruagens são providas de uma caldeira para aquecimento de água com a qual servem chá ou café. E o chá nos comboios ucranianos é uma espécie de ritual. Não há passageiro que não o tome! É servido num normal copo de galão, dentro de um suporte metálico, com uma pega, e com a inscrição da companhia ferroviária e uma imagem esculpida no centro – sempre diferente – referente a uma qualquer cidade ucraniana.

Mais que um simples revisor que confere bilhetes, aqui cada carruagem tem uma espécie de camareiro, que além de servir o chá, distribui, num saco devidamente lacrado, lençóis e uma toalha de rosto a cada passageiro – uma vez que quase todos os comboios fazem serviço noturno. Certifica-se desde logo, à entrada do comboio, que cada passageiro entra na devida carruagem, e uma vez em andamento, recolhe todos os bilhetes, que guarda numa ‘pasta’ especialmente concebida para o efeito, com ranhuras onde cada bilhete é introduzido e o respetivo número de lugar assinalado. Além disso, vende cerveja, bolachas ou outros pequenos snacks que lhe sejam solicitados.

É então hora de fazer a cama e esperar a entrada na fronteira. Os meus companheiros de viagem – todos ucranianos – dizem-me que teremos de esperar umas três horas devido aos procedimentos fronteiriços. Para além das questões referentes à documentação dos passageiros, o maior motivo de delonga prende-se com a necessidade de trocar os ‘rodados’ às carruagens. Como cada país tem uma bitola (distância entre carris) diferente, é necessário colocar cada carruagem num elevador, retirar-lhe os bogies – assim se designam os eixos dos comboios – e colocar outros capazes de circular nas suas linhas.

Classe kupe nos comboios na Ucrânia
A classe Kupe tem compartimentos fechados para quatro passageiros

Estes mesmos bogies parecem precisar de constante inspeção. Não raras as vezes – especialmente nas paragens mais longas – vi um funcionário da estação, munido de um grande martelo, vistoriar, com duas marteladas, cada um dos bogies. Percebi isto quando perguntei a um companheiro de viagem – que fazia um esforço entusiástico para falar inglês comigo – se sabia porque o faziam. Respondeu-me: “Para ver se está tudo bem. Se o som da martelada for estranho, é porque há qualquer problema com as rodas do comboio”.

Depois de alguns minutos de desconfiança por parte da agente da fronteira – talvez por causa do meu cabelo grande e barba por fazer – tenho o carimbo no passaporte e é então hora de saltar para uma das camas de cima e dormir.

Os comboios na Ucrânia têm duas classes. Para além dos comboios regionais – que apenas têm lugares sentados (e bancos de pau!) – todos os outros são compostos por carruagens com camas. A classe Kupe tem compartimentos fechados de quatro camas, enquanto a classe Platzkart consiste numa carruagem aberta, com setores de seis camas – quatro frente a frente e perpendiculares ao corredor, e mais duas paralelamente a este. É a classe mais barata. De Kiev a Donetsk viajo nesta classe e os mais de 1.000 km custam-me cerca de 14€ – o que fica bastante abaixo do meu orçamento de 5 cêntimos por quilómetro para deslocações, provando que é perfeitamente possível fazer aquilo a que me propus.

Há todo um ritual associado a estas viagens. Trocar o calçado por uns chinelos, ida à casa de banho para a limpeza corporal, fazer a cama, e a refeição. Esta é a carruagem do povo e todos parecem trazer farnel. Mas ninguém como o grupo de quatro amigos, que se dirigem para o quartel em Kamyanets Podilsky para prestar o serviço militar obrigatório, e que trazem um pouco de tudo: pão, peixe frito, ovos cozidos, latas de conserva, pimentos – que os ucranianos comem como quem trinca uma maçã! – e um sem numero de outras coisas que partilham e me fazem imaginar que tudo aquilo foi possivelmente preparado por uma mãe entristecida por ver o seu filho partir para a tropa…

Classe Platzkart nos comboios ucranianos
Classe Platzkart nos comboios ucranianos

A Platzkart é muito menos confortável que a classe superior. Desde logo, as duas camas do corredor “sofrem” com o corrupio dos passageiros de um lado para o outro e, além disso, o espaço nas camas de cima é extremamente exíguo, sendo difícil sequer despir a camisa, já sem contar com o facto de toda a carruagem ser aberta. No entanto, tudo aqui me lembra o porquê de estar aqui, o sentido da viagem, as pessoas por perto – que sorriem ao verem-me embarcar com elas nas mesmas condições de conforto (e desconforto!) -, os cheiros, a partilha e a generosidade de todos, tentando sempre estabelecer contacto comigo mesmo que não falem inglês, e sempre preocupados em me ajudar, ora com a cama, ora trazendo-me um cobertor, ora oferecendo-me chá.

Chego a Kiev à hora marcada.

Como pude comprovar durante as três semanas de estadia no país, o sistema ferroviário é verdadeiramente eficiente. Para além do serviço a bordo e da possibilidade oferecida por uma rede bem espalhada pelo território de chegar a qualquer lado, não há atrasos nos comboios e as principais cidades dispõem de uma bilheteira no centro das mesmas, facilitando a aquisição de bilhetes e não obrigando as pessoas a deslocarem-se à estação. Apesar de todas as diferenças, tenho muitas vezes a sensação de que, em Portugal, teríamos muito a aprender com os ucranianos, no que ao transporte ferroviário diz respeito.

De Cabo a Cabo tem por objetivo unir os pontos mais a norte da Europa e mais sul de África, numa viagem em busca das afinidades e multiplicidades dos povos, das suas culturas, crenças e esperanças, das suas singularidades e de como o homem é um ser “pacífico e cooperativo”, como dizia o professor Berger a Paul Theroux durante a sua «Viagem Por África». Com saída de Santa Maria da Feira, Portugal, no dia 28 de agosto de 2011, Mateus Brandão percorreu 20 países em 3 continentes durante 9 meses.

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Mateus Brandão

8 comentários em “Cama, chá e roupa lavada nos comboios da Ucrânia (De Cabo a Cabo #05)”

  1. Olá, Mateus Brandão! Sou da Ucrânia e fico mesmo muito contente com a opinião de um português sobre o sistema ferroviário ucraniano, eu própria adoro as viagens de comboio!

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  2. Olá! Também vou viajar de Varsóvia para Kiev este verão, no entanto ainda estou à procura do melhor bilhete de comboio. Fiquei super entusiasmada com toda a descrição da viagem de comboio.

    Tenho uma questão: diz na sua descrição que tinha o carimbo no passaporte, para poder entrar na Ucrânia. Mas agora já não é necessário ter visto, correcto?

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    • Os cidadãos portugueses têm de levar passaporte válido mas não necessitam de visto para entrar na Ucrânia (para estadas até 90 dias).

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  3. Bom depoimento e bom site. Parabéns Mateus.

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  4. Fiquei muito curioso em relação a viajar pela Ucrânia…
    E quanto à segurança…?

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    • Qual é a dúvida, em concreto?

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  5. Adorei a descrição desta viagem, eu próprio fiz em Setembro a viagem de comboio de Ternopil para Moscovo. Foram 22 horas inesquecíveis e todo este relato que acabei de ler me fez reviver essa viagem em muito parecida com a minha. Abraço e continuação de boas viagens.

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  6. Parabéns pelo blog. Sou brasileira e tenho vontade de conhecer a Ucrânia. É difícil a comunicação? Nos países do Báltico e em S. Petersburgo a gente consegue se virar com inglês. E na Ucrânia? Obrigada,
    Fátima

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