Durante três semanas, percorri a Ucrânia de lés a lés, um país que tem uma das maiores redes ferroviárias do mundo. O comboio é, pois, o meio de transporte por excelência, sendo possível calcorrear todo o país montado numa dessas carruagens de estilo soviético, bebendo chá de olhos postos na paisagem ucraniana.
Se foi com a moral um pouco em baixo que deixei a Polónia com destino à Ucrânia, já em Varsóvia – depois de ter deixado o amigo Hugo no aeroporto, ainda em Gdansk -, ao procurar na plataforma de embarque o setor onde devo esperar o comboio para Kiev, o entusiasmo renova-se imediatamente ao constatar simplesmente que o mesmo comboio faz serviço até Astana, no Cazaquistão. Fico sempre fascinado por estes comboios de longa distância que demoram dias a encontrar esses destinos exóticos, cruzando fusos horários e fronteiras esquecidas.
Ao entrar no comboio, sinto-me renovado. É uma carruagem ucraniana com compartimentos de quatro camas. Exatamente aquilo que sempre imaginei ser uma carruagem da era soviética; desde logo, a cor azul, sóbria, pintada sobre o ferro da carruagem com letras douradas em relevo, no interior; um tapete comprido estende-se ao longo de todo o corredor, cortinas a meio da janela, toalha sobre a mesa e, para completar, serviço de chá.
Todas as carruagens são providas de uma caldeira para aquecimento de água com a qual servem chá ou café. E o chá nos comboios ucranianos é uma espécie de ritual. Não há passageiro que não o tome! É servido num normal copo de galão, dentro de um suporte metálico, com uma pega, e com a inscrição da companhia ferroviária e uma imagem esculpida no centro – sempre diferente – referente a uma qualquer cidade ucraniana.
Mais que um simples revisor que confere bilhetes, aqui cada carruagem tem uma espécie de camareiro, que além de servir o chá, distribui, num saco devidamente lacrado, lençóis e uma toalha de rosto a cada passageiro – uma vez que quase todos os comboios fazem serviço noturno. Certifica-se desde logo, à entrada do comboio, que cada passageiro entra na devida carruagem, e uma vez em andamento, recolhe todos os bilhetes, que guarda numa ‘pasta’ especialmente concebida para o efeito, com ranhuras onde cada bilhete é introduzido e o respetivo número de lugar assinalado. Além disso, vende cerveja, bolachas ou outros pequenos snacks que lhe sejam solicitados.
É então hora de fazer a cama e esperar a entrada na fronteira. Os meus companheiros de viagem – todos ucranianos – dizem-me que teremos de esperar umas três horas devido aos procedimentos fronteiriços. Para além das questões referentes à documentação dos passageiros, o maior motivo de delonga prende-se com a necessidade de trocar os ‘rodados’ às carruagens. Como cada país tem uma bitola (distância entre carris) diferente, é necessário colocar cada carruagem num elevador, retirar-lhe os bogies – assim se designam os eixos dos comboios – e colocar outros capazes de circular nas suas linhas.
Estes mesmos bogies parecem precisar de constante inspeção. Não raras as vezes – especialmente nas paragens mais longas – vi um funcionário da estação, munido de um grande martelo, vistoriar, com duas marteladas, cada um dos bogies. Percebi isto quando perguntei a um companheiro de viagem – que fazia um esforço entusiástico para falar inglês comigo – se sabia porque o faziam. Respondeu-me: “Para ver se está tudo bem. Se o som da martelada for estranho, é porque há qualquer problema com as rodas do comboio”.
Depois de alguns minutos de desconfiança por parte da agente da fronteira – talvez por causa do meu cabelo grande e barba por fazer – tenho o carimbo no passaporte e é então hora de saltar para uma das camas de cima e dormir.
Os comboios na Ucrânia têm duas classes. Para além dos comboios regionais – que apenas têm lugares sentados (e bancos de pau!) – todos os outros são compostos por carruagens com camas. A classe Kupe tem compartimentos fechados de quatro camas, enquanto a classe Platzkart consiste numa carruagem aberta, com setores de seis camas – quatro frente a frente e perpendiculares ao corredor, e mais duas paralelamente a este. É a classe mais barata. De Kiev a Donetsk viajo nesta classe e os mais de 1.000 km custam-me cerca de 14 – o que fica bastante abaixo do meu orçamento de 5 cêntimos por quilómetro para deslocações, provando que é perfeitamente possível fazer aquilo a que me propus.
Há todo um ritual associado a estas viagens. Trocar o calçado por uns chinelos, ida à casa de banho para a limpeza corporal, fazer a cama, e a refeição. Esta é a carruagem do povo e todos parecem trazer farnel. Mas ninguém como o grupo de quatro amigos, que se dirigem para o quartel em Kamyanets Podilsky para prestar o serviço militar obrigatório, e que trazem um pouco de tudo: pão, peixe frito, ovos cozidos, latas de conserva, pimentos – que os ucranianos comem como quem trinca uma maçã! – e um sem numero de outras coisas que partilham e me fazem imaginar que tudo aquilo foi possivelmente preparado por uma mãe entristecida por ver o seu filho partir para a tropa…
A Platzkart é muito menos confortável que a classe superior. Desde logo, as duas camas do corredor “sofrem” com o corrupio dos passageiros de um lado para o outro e, além disso, o espaço nas camas de cima é extremamente exíguo, sendo difícil sequer despir a camisa, já sem contar com o facto de toda a carruagem ser aberta. No entanto, tudo aqui me lembra o porquê de estar aqui, o sentido da viagem, as pessoas por perto – que sorriem ao verem-me embarcar com elas nas mesmas condições de conforto (e desconforto!) -, os cheiros, a partilha e a generosidade de todos, tentando sempre estabelecer contacto comigo mesmo que não falem inglês, e sempre preocupados em me ajudar, ora com a cama, ora trazendo-me um cobertor, ora oferecendo-me chá.
Chego a Kiev à hora marcada.
Como pude comprovar durante as três semanas de estadia no país, o sistema ferroviário é verdadeiramente eficiente. Para além do serviço a bordo e da possibilidade oferecida por uma rede bem espalhada pelo território de chegar a qualquer lado, não há atrasos nos comboios e as principais cidades dispõem de uma bilheteira no centro das mesmas, facilitando a aquisição de bilhetes e não obrigando as pessoas a deslocarem-se à estação. Apesar de todas as diferenças, tenho muitas vezes a sensação de que, em Portugal, teríamos muito a aprender com os ucranianos, no que ao transporte ferroviário diz respeito.
De Cabo a Cabo tem por objetivo unir os pontos mais a norte da Europa e mais sul de África, numa viagem em busca das afinidades e multiplicidades dos povos, das suas culturas, crenças e esperanças, das suas singularidades e de como o homem é um ser “pacífico e cooperativo”, como dizia o professor Berger a Paul Theroux durante a sua «Viagem Por África». Com saída de Santa Maria da Feira, Portugal, no dia 28 de agosto de 2011, Mateus Brandão percorreu 20 países em 3 continentes durante 9 meses.
Seguro de viagem
A IATI Seguros tem um excelente seguro de viagem, que cobre COVID-19, não tem limite de idade e permite seguros multiviagem (incluindo viagens de longa duração) para qualquer destino do mundo. Para mim, são atualmente os melhores e mais completos seguros de viagem do mercado. Eu recomendo o IATI Estrela, que é o seguro que costumo fazer nas minhas viagens.
Olá, Mateus Brandão! Sou da Ucrânia e fico mesmo muito contente com a opinião de um português sobre o sistema ferroviário ucraniano, eu própria adoro as viagens de comboio!
Olá! Também vou viajar de Varsóvia para Kiev este verão, no entanto ainda estou à procura do melhor bilhete de comboio. Fiquei super entusiasmada com toda a descrição da viagem de comboio.
Tenho uma questão: diz na sua descrição que tinha o carimbo no passaporte, para poder entrar na Ucrânia. Mas agora já não é necessário ter visto, correcto?
Os cidadãos portugueses têm de levar passaporte válido mas não necessitam de visto para entrar na Ucrânia (para estadas até 90 dias).
Bom depoimento e bom site. Parabéns Mateus.
Fiquei muito curioso em relação a viajar pela Ucrânia…
E quanto à segurança…?
Qual é a dúvida, em concreto?
Adorei a descrição desta viagem, eu próprio fiz em Setembro a viagem de comboio de Ternopil para Moscovo. Foram 22 horas inesquecíveis e todo este relato que acabei de ler me fez reviver essa viagem em muito parecida com a minha. Abraço e continuação de boas viagens.
Parabéns pelo blog. Sou brasileira e tenho vontade de conhecer a Ucrânia. É difícil a comunicação? Nos países do Báltico e em S. Petersburgo a gente consegue se virar com inglês. E na Ucrânia? Obrigada,
Fátima