Animada por um surpreendente dinamismo cultural e banhada pelo clima generoso do Mediterrâneo, a cidade de Arles, que apaixonou Van Gogh e atraiu Gauguin e Picasso, ilumina-se por dentro e deixa-se iluminar por fora.
Seguindo o cais de la Roquette, depois o cais Marx Dormoy e, adiante, a rua Marius Joveau, não fazemos mais do que percorrer toda a frente fluvial da velha Arles, uma pequena urbe que nasceu e cresceu encostada ao Ródano como quem escolhe um ombro confidente, uma testemunha fiel para o resto da vida. Apesar do frio que nesta manhã límpida de inverno assola as margens, é para lá que se encaminham os seus habitantes assim que têm um bocadinho livre.
Pode ser uma simples pausa para o café ou apenas uns minutos antes de começar a jornada de trabalho; uma cigarrilha que se acende fitando as águas, ou o partilhar de uma conversa entre velhos amigos, agora reformados; levar o cão a passear também é um ótimo argumento, tal como o é um beijo e uns metros de passeio com a namorada. Qualquer coisa serve para justificar uma ida à beira-rio, porque estes arlesianos não foram feitos para ficar dentro de portas.
Arles, cidade com história
Com quase dois mil anos de idade, o anfiteatro romano erguido para albergar 20.000 espectadores parece, no entanto, querer disputar com o rio as atenções dos transeuntes, sejam locais ou forasteiros. De alguma forma, apesar da vigente limitação ao tráfego automóvel, o monumento acaba por funcionar como uma enorme rotunda, onde chegam e de onde partem todas as pequenas artérias que compõem o intrincado sistema circulatório do centro. Por isso mesmo é quase certo que ao fundo da rua veremos os grandes arcos que defendem a arena, num qualquer percurso que escolhamos fazer nesta zona – é o grande coração de Arles, por assim dizer. Ródano e romanos; alma e coração. Numa perspetiva simplista, mas perfeitamente atual, estaria assim apresentada a cidade.
Acontece que as ruas são estreitas, sombrias e labirínticas – já o disse -, escondendo uma infinidade de detalhes que só cedem a olhos persistentes ou a mentes conhecedoras. A relevância de um exíguo quadrado a céu aberto como a praça do Fórum, por exemplo, facilmente passará despercebida às vistas habitualmente desafogadas de um parisiense ou, quase certo, a qualquer turista do Novo Mundo.
Pouco depois de Júlio César ter ordenado a fundação de Arelate, em 46 a.C., era aqui que se erguia o edifício mais importante da colónia romana, concentrando o poder administrativo, económico e religioso. Durante a Idade Média este local foi palco de execuções públicas e, séculos depois, passou a servir como “Praça de Homens”, onde se reuniam e eram contratados ao dia os trabalhadores agrícolas.
Hoje, daquilo que era o fórum apenas subsistem à superfície as colunas de um templo, entretanto adotadas pela fachada do Grand Hotel Nord-Pinus, um quatro estrelas que oferece aos visitantes modernos o raro privilégio de pernoitar sobre dois mil anos de história. Quanto às concentrações humanas, elas continuam a ocorrer, não para testemunhar penas capitais nem para colher a atenção de angariadores de mão-de-obra, mas antes para saborear despreocupadamente um sorvete ou um pastis em esplanadas ao ar livre – porque a alegria provençal abastece-se sobretudo de energia solar.
Contudo, esta surpreendente Place du Forum não se esgota aqui. Qualquer cliente do Nord-Pinus reparará certamente na estátua de Frédéric Mistral, Nobel da literatura de 1904 que se empenhou na defesa e reabilitação da língua e tradições da Provença, atualmente bem representadas no museu Arlaten que ele próprio fundou. Ao lado do escritor, de mesas postas e praticamente inalterado, fica também um estabelecimento amarelo com um toldo a cobrir uma esplanada – o mesmo Café La Nuit que serviu de motivo a uma conhecida tela de Van Gogh.
O pintor holandês é o filho querido da cidade, ainda que adotivo, e não há brochura ou mapa oficial que não revele os seus passos por estas ruas tortuosas. O período que aqui viveu, entre fevereiro de 1888 e maio de 1889, é visto como o mais criativo da sua carreira, tendo resultado em cerca de 300 desenhos e pinturas que ilustram outros pontos bem conhecidos dos seus habitantes: a escadaria da ponte de Trinquetaille, a noite estrelada (pintada no cais do Ródano), a casa amarela da praça Lamartine, o jardim da casa de saúde, o jardim público do boulevard des Lices. Em boa verdade, bastar-nos-iam as telas de Van Gogh para seguir um roteiro que fizesse inteira justiça a Arles.
Centro histórico que fervilha de vida
Nas ruas pedonais do centro histórico, bem perto da praça onde começou toda esta dissertação, encontra-se o epicentro comercial, revelado por montras cuidadas capazes de tornar quaisquer cem metros numa estirada de duas horas. As pastelarias reluzem de doces e bombons alinhados num rigor joalheiro atrás de vidros imaculadamente transparentes; bolbos em caixinhas de madeira exibem-se numa delicadeza nipónica frente às portas de floristas e, mesmo ao lado, o traço criativo de designers traduz-se num arco-íris de objetos que reinterpretam o nosso quotidiano: facas, espremedores, cadeiras, candeeiros.
À hora do almoço esta zona fervilha de gente a tentar fazer compras de última hora ou conseguir a melhor mesa no bistrot do costume. Numa versão menos sofisticada, é também por aqui que abrem portas alguns antiquários, com o seu universo de objetos e memórias para descobrir ao longo de tardes inteiras, e livrarias, com postais ilustrados de pinturas impressionistas e um recheio alexandrino de títulos sobre a Provença – da gastronomia à agricultura, da perfumaria às artes plásticas.
Inevitavelmente, para onde quer que a nossa curiosidade nos leve, tropeçamos uma e outra vez na história. Em plena Praça da República, um grupo de estudantes senta-se no fontanário enquanto digerem um almoço de baguettes recheadas. Não sei se desconhecem por completo ou, pelo contrário, estão fartos de saber, mas aquele obelisco que se ergue bem acima das suas cabeças foi esculpido em granito proveniente da Turquia e decorava o muro central do velho circo romano, cujos vestígios podem ainda ser vistos junto ao Museu de Arles Antiga.
Nesta mesma praça vê-se também o edifício clássico que alberga a Câmara Municipal, inspirado na arquitetura de Versalhes, e ainda a igreja românica de Saint Trophime, construída no século XII com um pórtico tão rebuscado que mesmo hoje intimida os canteiros equipados das melhores ferramentas. As suas paredes e o recatado claustro que se abre ao céu no interior viram florescer uma comunidade monástica e passar milhares de peregrinos em demanda de Santiago de Compostela pela via Tolosana. Três monumentos, três épocas distintas, três classificações como Património Mundial: eis como um pequeno espaço urbano nos permite fazer uma inusitada viagem.
Com tantas influências externas, fruto do seu posicionamento geográfico, não é de estranhar que Arles tenha adquirido uma personalidade festiva que a coloca, certamente, no pódio das localidades mais animadas de França. Dos combates de gladiadores, que tinham lugar no anfiteatro, até aos eventos da atualidade, como é o caso dos reputados Encontros Internacionais de Fotografia, a cidade sempre soube entreter – da pior ou da melhor forma – os seus munícipes. E, por insólito que possa parecer, são ainda os palcos milenares que continuam a acolher as principais manifestações, como é o caso do teatro romano, para espetáculos de dança e festivais de música, ou do próprio anfiteatro, que durante todo o verão serve de arena às peculiares corridas camarguesas.
Pelo meio há um sem-número de concertos, exposições, representações e workshops, que faz da urbe uma espécie de besta cultural imparável, dotada de vida própria e cujo nascimento parece dever-se ao histórico convívio entre artistas: Van Gogh convidou Gauguin a vir pintar para aqui, os festivais tauromáquicos e o fantasma de Van Gogh atraíram Picasso, que era amigo de Lucien Clergue, que fundou os Encontros de Arles e levou posteriormente à instalação da Escola Nacional de Fotografia. Há algo de incrível em tudo isto. Dizem que é da luz.
Arles e o Rio Ródano
No Hotel de l’Amphithéâtre, onde pernoito, peço para subir ao quarto que culmina o edifício, o único sem número mas com um aliciante nome pintado na porta: chambre belvedere. As janelas dão para um céu intensamente azul que pousa num mar de telhados gastos pelo tempo; a torre da Igreja de Saint Trophime é o único ancoradouro para o olhar, que de resto já se perdia no horizonte. E vejo ao longe a curva do rio. Sem saber bem porquê, senti uma vontade súbita de ir até lá, como fazem diariamente os arlesianos.
Encostados ao cais estão vários barcos-hotel, longos e baixos para poder passar sob as pontes do Ródano. São muito populares entre os turistas de mais idade, particularmente os que vêm do Japão e dos Estados Unidos – povos que não estão para estragar as férias com uma adaptação forçada à condução latina. Este tipo de cruzeiros nunca ocupou os meus sonhos, mas numa tarde fresca como esta, que o vento Mistral só ajuda a arrefecer, consigo até invejar o casal de japoneses que vejo imerso num jacuzzi fumegante sobre o convés de relva artificial.
Para jusante fica a ponte de Trinquetaille e logo abaixo o quai de La Roquette, onde outros casais continuam o seu passeio abraçados como nunca, agora que os candeeiros começam a pingar luz e as cores da noite se levantam definitivamente das águas. O bairro que se esconde atrás da muralha fluvial, e que leva o mesmo nome do cais é, talvez, a zona residencial mais carismática.
As casas são baixas, de cores pastel, quase sempre abertas à luz em portadas tradicionais de ferro e madeira. E há sempre uma glicínia ou buganvília a trepar a fachada até ao andar de cima. Boa parte dos moradores parecem de origem ou ascendência magrebina e isso nota-se pela descontração com que os seus filhos brincam na rua e pelos pequenos negócios que emprestam um cheirinho exótico aos quarteirões. É o extremo ocidental da cidade velha.
Seguindo o rio para lá deste ponto entramos oficialmente na Camarga, tão indissociável de Arles como o próprio Ródano que aqui escolheu abrir-se num vastíssimo delta. É de lá que vêm os touros pretos e os cavalos brancos que animam as festas locais, que também contam com a agilidade e coragem dos razeteurs, esses gladiadores modernos que se vestem de branco para roubar um laço entre os cornos do animal. Um método ortodoxo para obter reconhecimento público, particularmente arrebatador quando a corrida se desenrola no anfiteatro romano.
Perto dali, todos os sábados de manhã a polícia encerra sem contemplações o boulevard des Lices. Não é tarefa fácil, sobretudo quando se trata do principal eixo que rasga a malha urbana. Seja como for, por ora apenas passam carrinhas de feirantes, que é dia de mercado. Em poucas horas surgem bancas e toldos, alinham-se caixas e borrifam-se verduras, e o boulevard inunda-se de gente.
Bochechas rosadas alternam com feições rurais no elogio vocal às virtudes dos produtos e há sempre alguém que acaba por parar para se inteirar melhor do preço ou da frescura. Aqui desagua o que de melhor produz a Provença, numa paleta de cores e aromas simplesmente indescritíveis: começa numa ponta pelos produtos hortícolas, vai aos cogumelos e aos enchidos, continua pelas azeitonas e derivados, das flores passa aos sabonetes e essências, depois ruma às ervas aromáticas e especiarias para só terminar ao fundo da rua, nos peixes, bivalves e mariscos. Falhei certamente uma ou outra coisa, mas elas hão de reaparecer nas mesas de restaurantes como o Corazón, transformadas em algo do tipo chévre chaud au miel et sa petite salade de roquete.
Produtos locais no mercado semanal de Arles
Ao final da manhã o grande circo semanal começa a ser desmontado e os clientes entram em serena debandada. Continua frio e o céu está de um azul cristalino, como só fica quando sopra o mais cortante Mistral de inverno. Mas nem assim as pessoas parecem querer recolher a casa; preferem ficar pelas esplanadas vizinhas com as compras ao lado ou rumar aos bancos do Jardin d’Eté; está-lhes no sangue. E se agora é assim, imagino a alegria quando chegar a primavera e logo depois o verão.
O espaço do mercado está agora quase vazio, mergulhado num silêncio pouco próprio das cidades. Enquanto observo um vendedor carregar os derradeiros baldes com girassóis, tento antecipar a magia desses dias na visão impressionista de Vincent Van Gogh: “agora temos aqui um calor intenso, glorioso, sem vento, isto é mesmo para mim. Um sol, uma luz que à falta de melhor nome só posso chamar amarela, amarelo baço de enxofre, ouro baço de limão. Oh, como é lindo o amarelo!”.
Dicas para visitar Arles
Este é um guia prático para viagens a Arles, em França, com informações sobre a melhor época para visitar, como chegar e sugestões de actividades na região da Provença.
Quando visitar Arles
O início da primavera é particularmente recomendável, não há demasiados turistas e a Provença começa a revelar todo o seu esplendor. O inverno não deixa de ser interessante porque temos Arles inteira só para nós, os dias ensolarados são frequentes e podemos contar com preços de época baixa em boa parte dos hotéis.
Como se deslocar
Arles é relativamente plana e bem mais pequena do que se possa imaginar. Circular a pé é a forma mais cómoda e até mais rápida de chegarmos aos vários pontos de interesse do centro. Apesar disso, alugar um carro é uma excelente opção, já que a curta distância da cidade encontram-se paisagens belíssimas, como a Camarga, a oeste, e a cadeia montanhosa de Les Alpilles, a este. No aeroporto de Marselha operam diversas companhias de rent-a-car.
Pode também optar pelo comboio: Arles encontra-se ligada à rede nacional de caminhos-de-ferro, com acesso fácil e regular às principais cidades do sul de França, como Nîmes, Montpellier, Avignon e Marselha, estas duas últimas servidas por TGV permitindo uma viagem rápida de ou até Paris.
Hotéis em Arles
A oferta de alojamento é muito vasta, mesmo no centro histórico, onde pequenos hotéis de charme têm aberto portas após cuidados restauros nos edifícios renascentistas e medievais que os albergam; muitos não dispõem de elevador de acesso aos quartos. O estacionamento à porta é praticamente impossível, mas alguns deles oferecem estacionamento em Parque público vigiado. Aqui ficam duas sugestões:
Hotel de l’Amphithéâtre. Como o nome indica, fica a escassos metros do monumento romano. Os quartos são muito confortáveis e tem um ótimo pequeno-almoço.
Hotel Le Calendal. Com um ambiente familiar, constitui uma boa opção para quem viaja com crianças. Os quartos são algo pequenos, mas o generoso jardim interior junto ao restaurante compensa a eventual sensação de falta de espaço.
Seguro de viagem
A IATI Seguros tem um excelente seguro de viagem, que cobre COVID-19, não tem limite de idade e permite seguros multiviagem (incluindo viagens de longa duração) para qualquer destino do mundo. Para mim, são atualmente os melhores e mais completos seguros de viagem do mercado. Eu recomendo o IATI Estrela, que é o seguro que costumo fazer nas minhas viagens.