A Camarga nasceu dos ventos, do rio e do mar. De uma delicada subtileza, as suas paisagens convidam ao passeio, e os seus tons pastel só são perturbados pelo rosa vivo dos flamingos, o negro dos touros e o branco dos cavalos. Viagem à Camarga, no Sul de França, com passagem por Aigues Mortes, Saintes Maries de La Mer e Salin-de-Giraud.
La Grande Motte. Apesar do reflexo da luz, que dilui cores e formas no horizonte, distingue-se o vulto dos prédios aerodinâmicos para lá das lagoas salgadas, onde um grupo de flamingos se delicia com os últimos raios de sol. Dos dois lados da estrada, charcos, lagoas e pântanos confundem-se e sucedem-se, escondidos por alguns muros de canaviais.
De Aigues Mortes a Saintes Maries de la Mer
Aigues Mortes. Uma surpresa medieval na paisagem. Bem acima da planície molhada, erguem-se as muralhas da cidadela fundada por São Luís (Luís IX de França), protegendo do mistral as ruas simétricas da povoação. Antigo ponto de partida para cruzadas além-mar, hoje é ponto de chegada para os milhares de turistas que todos os anos visitam uma das áreas mais características de França – a Camarga.
Restaurantes, esplanadas e lojas de souvenirs encaixam-se entre casas de cores suaves, com portadas de madeira contrastantes. Por todo o lado se anuncia os produtos da região: espargos e vinho des sables (das areias). A construção mais marcante é a torre de Constance, obra defensiva mas que já serviu de farol – a costa fica a apenas 3 quilómetros – e de prisão. Por fora, a longa linha castanha da muralha, interrompida por torres redondas, sai das “águas mortas” dos canais como uma miragem de outros tempos.
Entre Aigues Mortes e Saintes Maries de la Mer, o mar nunca mais nos abandona. Com um casario irrepreensivelmente branco e as ruas estreitas e charmosas alinhadas em torno da catedral românica, o nome “não-oficial” da capital da Camarga, de sabor ibérico e cigano, assenta-lhe que nem uma luva: Li Santi Mario de la Mar.
Cada vez mais ligada ao turismo, pelo seu clima e posição estratégica numa área de reconhecida beleza, Saintes Maries de la Mer tem vindo a multiplicar a oferta de todo o tipo de actividades turísticas associadas às características da zona, nomeadamente passeios de barco e de cavalo. Por todo o lado é visível a transformação desta pequena cidade costeira, de tradições ganadeiras e piscatórias num chamariz turístico, onde não falta a excentricidade das peregrinações anuais ciganas, a 24 de Maio.
Do terraço da igreja sente-se o pulsar da cidade: de um lado, a praia e o porto, com mais barcos de recreio que de pesca; do outro, os telhados estendem-se até aos primeiros charcos e pântanos, nos limites da cidade. Mais perto, a arena, onde se organizam “touradas” sem que o touro seja ferido.
É de lá que sai a manade, no fim do espectáculo, conduzida por gardiens a cavalo, até às pastagens. Quase em extinção no século passado, contam-se agora mais de uma centena de manadas em toda a região, de tal modo que é impossível passar por aqui sem as ver, no seu habitat.
Agressivo e com uma silhueta muito própria, o touro negro da Camarga – tão negro que é difícil distinguir os olhos! – é considerado o descendente mais próximo do primitivo auroque e passeia em liberdade total, pregando alguns sustos a caminhantes descuidados. Inseparável do touro é o cavalo camarguês, montada dos cowboys locais: branco, de aspecto sólido e pequeno porte, conhecido pelo seu pé firme seja qual for o terreno.
Mas mal se atravessa de ferry o canal Bac du Sauvage, ainda antes de Saintes Maries de la Mer, penetramos, finalmente, no Parque Natural Regional, que protege uma área de 85.000 hectares de flora e fauna específicas desta planície aluvial. São mais de 160 espécies botânicas, só nas zonas mais chegadas ao mar, e mais de 400 espécies de aves – entre as quais flamingos, garças e abelharucos -, para além dos seus símbolos mais conhecidos, o cavalo e o touro da Camarga.
Transformado pela força do vento e do Mediterrâneo, o delta do Rio Ródano é uma área de excepção para ornitólogos e amantes da natureza em geral. Num labirinto de canais e lagoas, entre dunas, canaviais e salinas conserva-se, de forma visível, um delicado equilíbrio ecológico: a lagoa do Fangassier, é o único local de França onde nidificam flamingos; a de Vaccarès, é um verdadeiro santuário de peixes-espinho, carpas e enguias, entre muitos outros.
Para além de serem um elemento comum – e essencial – na paisagem, todas as lagoas têm maior ou menor teor de salinidade e são pouco profundas, não ultrapassando, em média, um metro. A excepção é a de Vaccarès que, para além de ser a maior, com mais de 6.500 ha, atinge o dobro da profundidade. Protegida pela mais antiga Reserva Nacional, desde 1927, a pesca nesta área só é autorizada em determinadas épocas, por razões científicas.
Ecoturismo na Camarga
Diz-se da Camarga que é uma “ilha abraçada pelo Ródano”, que se divide a montante de Arles, formando um triângulo de terra e água em permanente troca de lugar. Os aluviões do rio vão-se depositando em ilhotas baixas e as correntes vão mudando a sua forma.
É nesta paisagem de aspecto pantanoso, debruada a juncos e areia, que aparecem as sombras brancas dos cavalos, patanhando com segurança entre bandos de pássaros que levantam voo. Este é o país dos grandes espaços luminosos; mesmo o nevoeiro deixa passar uma luz intensa, que transforma os flamingos em silhuetas cinzentas e os charcos em linhas prateadas.
De vez em quando, um feixe de raios de sol fura as nuvens e reaparecem as cores, sem que os flamingos, de novo rosados, interrompam a contínua dragagem do fundo do lago. Em Fangassier são às dezenas, de bico enfiado na água, como um ovo rosado com três pernas. De vez em quando, um levanta voo e incendeia-se, revelando vermelhos e negros insuspeitados debaixo das asas.
Contornando a lagoa até ao Digue à la Mer, obra centenária que impede a invasão das marés, atinge-se zonas secas com formações fantásticas de solo lunar, montículos, agulhas e crateras de um palmo de altura. Mais adiante, as dunas esculpidas pelo vento e marcadas pelos cascos dos cavalos. E mais adiante ainda, a Reserva Departamental des Impériaux, interdita a visitantes.
Para onde quer que se caminhe, a paisagem, aparentemente homogénea, vai revelando detalhes de uma beleza subtil: as flores de tons secos em redor dos canais, a cor da água, do cinza ao azul petróleo, as garças friorentas, recolhidas atrás dos juncos. Por vezes, dá-se o ataque violento do mistral, que sacode a paisagem, encrespa as lagoas e despenteia os flamingos, obrigando-os a aninhar-se na água.
À noite, os sons enchem o ar de mistério. Numa tenda de campismo ou num quartinho dos típicos Mas da zona, com telhados de caniço, a natureza está a dois passos mas é difícil identificar o que se ouve – patos, sapos, cavalos? A água é extraordinariamente silenciosa, mas tudo o resto parece ganhar vida quando o sol se põe. De manhã, a luz torna ofuscantes as paredes brancas das pequenas quintas da área.
Os cavalos activam-se e são levados pelos donos ao pasto ou até perto da estrada, onde podem ser alugados a turistas. Desde já há alguns anos que se levantam vozes pela dignificação deste nobre animal, que já quase não deambula em liberdade por causa da sua enorme procura turística, como montada. São muitos os cavaleiros, e reconhece-se facilmente quem é de cá e quem está de visita: à conversa com o seu sotaque cantante e cavalos a trote vivo, os primeiros; em grupos silenciosos com os cavalos a passo, os segundos.
Com uma natureza privilegiada, nada mais óbvio que promover o ecoturismo, ou seja, actividades de aproximação à natureza, que a respeitem e dêem a conhecer. Não são só as cavalgadas que se incluem neste campo, também os percursos pedestres marcados, dentro do Parque Ornitológico de Pont de Gau ou da Reserva, em La Capelière.
Claro que também há as ofertas de mau gosto, como os “safaris” de jipe em terrenos privados que têm – dizem – rinocerontes, crocodilos e até rodeos à maneira do Oeste e tipis índios!… Quando o vento não resolve levar a paisagem pelo ar, o melhor é mesmo percorrer estradões, como o do Digue à la Mer, com o meio de transporte que possui o conforto e a velocidade ideais para percorrer áreas planas: a bicicleta.
As salinas da Camarga
De aspecto calmo e algo melancólico, o cavalo camarguês caminha pelos pântanos e sobre areia com a mesma facilidade com que atravessa os pastos, ou galopa ao longo da estrada, conduzindo turistas até às salinas – outra das importantes marcas da região.
Desde há séculos que as lagoas naturais do Sul da Camarga têm vindo a transformar-se nestas explorações de “ouro branco”, transportado por canais e estradas, para ser vendido no resto do país. Antes do mar se afastar de Aigues Mortes, este era um dos produtos mais conhecidos da zona. Perto de Saintes Maries de la Mer ainda funciona a mais importante, em Salin-de-Giraud: 10.000 hectares de salinas com uma produção possível de um milhão de toneladas por ano.
Provavelmente, a sobrevivência do flamingo europeu deve-se a esta combinação de água e sal, que constitui o ambiente ideal para a sua nidificação. A maior parte dos outros pássaros encontra abrigo nos caniços e terrenos marginais junto das lagoas, uma vez que as árvores, nesta planície de terra pouco firme, são coisa rara. Javalis e toirões são dois dos mamíferos que também proliferam por aqui e, embora não sejam fáceis de encontrar, constituem mais uma prova da diversidade e equilíbrio de uma das mais belas zonas húmidas da Europa.
Algumas garças somem-se ao longo dos canais e grupos de gaivotas gritam, excitadas com o vento frio que varre a areia da praia. Entre a água do mar e das lagoas, uns metros de terra servem de estrada a caminhantes, ciclistas e cavaleiros, e as aves parecem já nem dar por eles, entretidas a guerrear-se pelo lugar mais abrigado. Na lagoa de Vaccarès as vagas crescem, sacudidas pelo vento, e os juncos balançam ao mesmo ritmo – nunca a terra se pareceu tanto com o mar.
Aparentemente monótona, a paisagem vai-nos envolvendo e conquistando devagar, com as suas paisagens subtis musicadas por um coro incessante de pássaros. Decididamente, a Camarga não é um lugar de passagem.
Guia de viagens à Camarga
Este é um guia prático para viagens à Camarga, em França, com informações sobre a melhor época para visitar, como chegar e sugestões de actividades na região.
Como chegar
Não há voos directos de Portugal para qualquer cidade da Camarga, havendo no entanto companhias low cost (como a Ryanair) que voam para o Sul de França, nomeadamente Marselha, de onde o acesso rodoviário para locais como Aigues Mortes e Saintes Maries de La Mer é relativamente fácil.
Onde ficar
Um pouco por toda a Camarga, e especialmente em aglomerados urbanos como Saintes Maries de la Mer, existem inúmeras opções de alojamento. Sugerimos que consulte a selecção de hotéis na Camarga listados no link abaixo.
Seguro de viagem
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