Chego a Kuta, coração turístico de Bali e apercebo-me que as feridas dos estilhaços de 2002 ainda não sararam. Os balineses, que têm na harmonia um valor supremo, ainda hoje não percebem as razões de tão vil atentado na sua ilha.
Sábado, 12 de outubro de 2002. A Rua Legian estava apinhada de gente como acontecia todas as noites de sábado. Bares e discotecas eram o ponto de encontro de turistas de diversas nacionalidades, no dia mais agitado da semana. Predominavam os australianos, mas havia também ingleses, japoneses e visitantes de muitos outros países. E Legian era o centro nevrálgico desse bulício nocturno. Em quase todos os bares, bandas entoavam cantigas ao gosto dos visitantes, procurando atrair os transeuntes para dentro de portas. Kuta vivia do turismo quando o relógio marcava quase meia-noite. E foi então que o impensável aconteceu.
Em toda a cidade ouviu-se um estrondo. No Paddy´s, um dos mais populares bares dançantes da cidade, algo grave tinha acontecido. O pânico havia-se instalado e as pessoas corriam para a rua, desesperadas, procurando refúgio de algo que não conseguiam ainda explicar. Numa ilha onde a harmonia é um valor soberano, ninguém queria acreditar que aquele som era o que parecia ser. Mas, momentos depois, o estrondo de uma segunda explosão, muito mais forte do que o anterior, ecoou nos tímpanos de turistas e balineses. O Sari Club, apinhado de gente, havia sido reduzido a poeira salpicada de sangue pelos estilhaços de uma bomba. Num ápice, duas centenas de corpos desligavam-se da vida terrena. E Bali nunca mais foi a mesma.
Ao segundo dia em Kuta, o calendário marcava de novo sábado. Dirigi-me para a Rua Legian, instintivamente. Olhei para os letreiros luminosos, entrei e sai de uns quantos bares tirando o pulso ao ambiente, até que um néon me chamou a atenção: “Paddy´s”. Entrei. Situado ligeiramente a sul da antiga localização, a noite estava animada. Muitos australianos jovens emborcavam cocktails de alto teor alcoólico e dançavam animadamente ao som de músicas a convidar o embalo dos corpos. Bastantes prostitutas javanesas usavam a falta de isqueiro para iniciarem conversa com os homens presentes. Balineses bem-parecidos, de longos cabelos negros, tez escura e corpo musculado, tentavam a sua sorte com as loiras australianas. E algumas caras de feições familiares conversavam, dançavam ou bebericavam uma Bintang, aprazível cerveja indonésia. Eram professores portugueses a leccionar a língua materna em Timor-Leste. Aproveitavam a interrupção lectiva da Páscoa para mudarem de ares e terem acesso a bens difíceis de obter no mais novo país do planeta. “Em Timor falta muita coisa. Vimos às compras, descansar e divertirmo-nos”, confessavam três docentes portuguesas a trabalhar em Timor-Leste há já quatro anos.
Mas, apesar da aparente agitação, nada se comparava com a época anterior à fatídica noite. Numa ilha que vivia e vive do turismo, as consequências dos atentados foram devastadoras. Só no primeiro ano após as explosões, o número de chegadas a Bali reduziu-se para metade. “Desde as bombas, não há turistas”, lamentava um vendedor de rua, comprovando a verdade crua dos números. Para além disso, o tipo de visitantes parecia ter-se alterado. Os mais velhos e endinheirados afastaram-se da ilha, para desconsolo local. “O negócio vai muito mal. E os turistas que agora vêm a Bali não têm dinheiro”, queixava-se Christian, nome anglicizado de um taxista de profissão, afinado pelo mesmo diapasão de desconsolo. “Até hoje não consegui perceber porque nos fizeram isso”, continuou. “Somos um povo de paz”, emocionou-se.
Para os turistas e viajantes que percorriam a Rua Legian, era também difícil não sentir uma ponta de emoção. Um memorial de homenagem às vítimas foi entretanto edificado onde outrora se localizava o Sari Club. Consiste numa parede decorada de forma muito simples contendo umas inscrições que, ao longe, não dava para decifrar. Uns passos adiante, olhando mais de perto, uma lista de nomes revelava-se. Todos sabiam que aqueles eram os nomes das duas centenas de vidas inocentes ceifadas aquando daqueles estrondos. Muitos paravam petrificados olhando a lista, outros fotografavam o memorial. E a lembrança das consequências das bombas era o suficiente para humedecer os olhos de quem parava em frente ao memorial. Os nomes estavam ali, verdadeiros, encarnando vidas que estavam no sítio errado à hora errada, divertindo-se. Corpos oriundos de vinte e dois países jazeram naquele exacto pedaço de solo, dois anos e meio atrás. Indagava sobre as nacionalidades das vítimas quando uma se destacou aos meus olhos. Acendi um incenso e no memorial deixei uma flor. Paz à alma do Diogo!
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.