Aterro em Mendoza – região que produz grande parte dos bons vinhos da Argentina -, antes de me embrenhar no ambiente poético do bairro San Telmo em Buenos Aires. Aí, no coração da capital argentina, vejo e ouço os arrojados caminhos trilhados pelo novo tango, muito por “culpa” do trabalho Gotan Project. O electro-tango veio para ficar.
O som está por todo o lado. Na rua, nas rádios, nas lojas, nos cafés. Estando em Buenos Aires, não há como escapar à poesia de um acordeão. Na verdade, o tango sempre fez parte do quotidiano dos porteños – habitantes da capital argentina. Mas algo mudou, recentemente. Dizem-me que muitos jovens têm reencontrado os prazeres do tango. Cada vez mais. Dançar não é coisa de gente velha, saudosista de outros tempos. Mais do que num passado recente, o tango é agora de todos.
Se fosse possível eleger um único responsável por essa aproximação dos jovens às suas raízes culturais, um nome surgiria quase unânime: Gotan Project. O trabalho discográfico que conquistou a Argentina e o mundo, com um improvável casamento entre o tango e a música electrónica, mudou a face do tango argentino.
Desde então, inúmeras bandas surgiram na cena musical porteña. Nomes como Bajafondo, Ultratango e Otros Aires estão nos escaparates das lojas, ouvem-se nas ruas e nas milongas – os salões onde os argentinos se encontram para conviver, beber e dançar tango. Seguem os passos pioneiros do Gotan Project, combinando sons teoricamente inconciliáveis. Produzem música dançável e aprazível, à qual adicionam uma componente multimédia durante as apresentações ao vivo. Uma mistura de sons tradicionais, batidas electrónicas, vídeo e imagem, luz e cor.
Foi o que presenciei numa milonga onde a música ao vivo estava a cargo dos Otros Aires, nome brilhante para um dos grupos desta nova tendência musical. Os casais de dançarinos que frequentavam o baile eram maioritariamente jovens. Não vestiam de preto. A sensualidade estava lá, apesar dos passos de dança fugirem um pouco ao tradicional. Havia, inclusive, turistas entre os dançarinos. Evolução ou ultraje?
Como seria de esperar, muitos não se revêem nesta nova tendência. “Os mais velhos não compram; alguns acham o tango electrónico uma ofensa aos sons tradicionais”, disse-me um vendedor de uma loja de discos. Mantêm-se fiéis a marcos como Carlos Gardel e não suportam a forma como aqueles grupos jovens brincam – musicalmente falando – com as melodias do grande mestre do tango. Não me surpreende. Imagino o que diriam os mais puritanos portugueses se algum criativo brilhante editasse um imaginário Dofa Project, de grande qualidade musical, misturando sons electrónicos e drum´n´bass à melancolia lusitana do fado.
Mas nem só electro-tango se ouve em Buenos Aires. Os sons eternos de Gardel e demais compositores clássicos são também presença assídua nos cafés e ruas dos bairros da cidade. Especialmente num deles. Popular e boémio, o San Telmo é um tradicional bairro de classe operária. Todos os domingos, na Praça Dorrego – o coração de San Telmo – e nas ruelas em redor, casais de dançarinos, jovens e menos novos, apresentam-se perante os transeuntes que afluem à feira de antiguidades que tem lugar na praça. Fazem-no para que o chapéu se encha de pesos ou dólares. E bem os merecem. Não são pedintes, são artistas. Pessoas como o “Índio”, brilhante entertainer e exímio dançarino de aspecto a lembrar Joaquim Cortez, encantam plateias de gente anónima sentada no chão da Dorrego. Apresentam os tangos de Gardel e tantos outros. E assim, todos os domingos, o tango mais puro desce às ruas de San Telmo.
Dançar tango é levado muito a sério em Buenos Aires. Consta, por exemplo, que nenhum porteño gosta de dançar com alguém cujo nível seja inferior ao seu. Ser visto com um par desajeitado numa milonga é como que desprestigiante. Por isso, e talvez impulsionada pelo aumento da população dançante, uma nova profissão vem surgindo. São os taxi-dancers, exímios dançarinos que cobram à hora para servirem de par a outro alguém nos bailes da capital.
Aparte o tango, durante a estadia em Buenos Aires visitei ainda algumas zonas curiosas. Como o camiñito, no bairro La Boca, com as suas cores garridas e variadas como uma manta de retalhos. Ou o famoso Café Tortoni, versão porteña do portuense Majestic. E uma outra atracção menos usual. Dizem os guias de viagem que uma das atracções turísticas mais populares de toda Buenos Aires se chama Recoleta. Um lugar faustoso, elegante, reservado aos mais endinheirados, famosos e influentes da sociedade porteña. Dizem-me que é nesse espaço que a elite repousa e que lá afluem argentinos e turistas de todo o mundo. Nada de mais, não fora o caso de o lugar em causa ser um cemitério. Curioso por tão sinistra atracção, não resisti. E o que vi, apesar do esplendor arquitectónico dos jazigos – alguns são obras de arte verdadeiramente impressionantes! -, não deixa de ser um pouco estranho. É um cemitério. Ponto. De gente rica – é certo -, mas apenas um cemitério. À parte o genuíno interesse em prestar uma última homenagem a personalidades como “Evita”, não consegui entender porque é que o Cemitério da Recoleta é uma atracção turística. Fico-me pelo tango.
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.
Comentários sobre “Reinventando os sons de Gardel, em Buenos Aires”
Apesar de também ser isto, Buenos Aires é muito mais do que isto.
É muito bom ler sobre uma das minhas cidades favoritas pelos olhos de alguém que a viu de uma forma muito diferente de mim.
Recordo de Buenos Aires, para além do tango para turista ver, os mercados, o cheiro das ruas depois da chuva, as pessoas a transpirar, as milongas ao som de vinis em apartamentos da periferia – e a “nova geração” entusiasmada com os discos arranhados dos pais e não com os sons electro…
Recordo as putas de esquina na Suipacha, os traficantes da praça Dorrego. As lojas e os cafés de Palermo, o cheiro de flores na Recoleta. Os bigodes sul-americanos e os olhares curiosos das favelas periféricas. Os bifes e o cordeiro patagão assado na brasa. O meu amigo Fernando e o seu quase pai quase irmão Roby Reali.
Boa viagem. Hélder
Comentário enviado por Hélder em 09.AGO.2005 – 15:41
Quase que se ouve o som do bandoneon… :) Acho que vou gostar de visitar Buenos Aires um dia. E está lançado o repto, “DoFa Project”! Sabes, creio que o problema do fado é que não é mesmo feito para dançar, não é muito rico em ritmo. Lá vão aparecendo umas misturas ao jeito de chill out, e mesmo assim… de qualquer forma, a verdade é que me parece que nunca ninguém se esforçou realmente para o reinventar e lhe dar outra vida. Acho que é pena…
Boa viagem!
Comentário enviado por A.P. Ribeiro (Tyson) em 09.AGO.2005 – 20:02
Estava a ler estes comentários e não posso deixar de fazer uma sugestão (na sequência da reinvenção do fado): são quatro, três homens (Luís Varatojo, João Aguardela e Vasco Vaz) e uma mulher com uma grande voz (Maria Antónia Mendes – Mitó para os amigos). O projecto chama-se “A Naifa” e o primeiro álbum “Canções subterrâneas”. Penso que poderemos chamar-lhe uma reinvenção do fado!
Beijinhos e BOA VIAGEM!
Comentário enviado por Carla em 10.AGO.2005 – 11:30
Estou de acordo com a Carla, os Naifa são uma bela re-invenção fado. Num tom completamente diferente acrescento também o projecto Mário Lundum.
Abração e boas viagens!
Comentário enviado por Ricardo Ferreira (Bidros) em 10.AGO.2005 – 12:10