Esta é uma zona escassamente povoada dos Midi-Pyrénées, o reino da pedra e da solidão. Subir ao planalto Méjean para espreitar as gargantas que o isolam é entrar num deserto quase secreto, onde o vento e a chuva esculpiram torres e castelos, e o ruído mais forte é o ressoar dos nossos próprios passos. Reportagem de uma caminhada pelas gargantas dos rios Tarn e Jonte, França.
Gargantas do Tarn e do Jonte, segredos de pedra
Vistos de baixo, da aldeia de Le Rozier, os causses, como se chama no Sul de França a estas mesetas de calcário, erguem-se num declive forte, coberto de floresta, para terminarem em paredes nuas e verticais. O seu aspecto impressionante atrai caminhantes e apreciadores da Natureza em geral, ao mesmo tempo que constitui o habitat de uma fauna tímida de pequenos mamíferos e aves, que encontram refúgio nesta inacessibilidade quase perfeita.
O Causse Méjean está cercado pelos rios Tarn e Jonte, estreitos fios de água que já cavaram cerca de quatrocentos metros e continuam a aprofundar o vale, transformando o planalto numa península isolada e reduzindo-lhe o acesso a algumas estradinhas de montanha, estreitas e vertiginosas ou, melhor ainda, a trilhos pedestres. Cá em baixo ficam as aldeias mais frequentadas, algumas dedicadas ao turismo desde há algum tempo, como Le Rozier, do lado do Rio Jonte, ou Saint-Chély-sur-Tarn, do lado do Tarn. Não faltam cafés, restaurantes, parques de campismo, hospedarias de todos os géneros e, sobretudo, praias fluviais com caiaques de aluguer e uma abundância de trilhos bem assinalados; graças à natureza “pouco receptiva”, nomeadamente pela meteorologia inconstante e pelo relevo abrupto onde correm rios curvilíneos nem sempre pachorrentos, o turismo aqui tende a ser do tipo desportivo.
As aldeias já foram mais, e o que delas resta confunde-se com a paisagem. Só percorrendo a estrada ao longo dos rios é que conseguimos ver esta espécie de construções semi-trogloditas, que parecem sair directamente da rocha. A maior parte tem um ar romanticamente abandonado, e algumas ainda conservam o cabo que permitia atravessar as mercadorias sobre as águas, de uma margem para a outra – memórias medievais, de um tempo em que nem só a natureza esculpia as margens do Tarn. Construídas em pedra, da mesma pedra onde assentavam, as casitas acinzentadas parecem coladas à rocha por milagre. Ainda há recantos como Plaisance e Castelbouc, punhados de casas charmosas e isoladas nas margens azul-turquesa ou verde-esmeralda dos dois rios, onde linhas finas de choupos marcam a fronteira entre a terra e a água. Mas só depois de abandonarmos a estrada e percorrermos alguns trilhos solitários é que ficamos com a noção exacta do lugar e da sua beleza selvagem.
A pé pelo “Planalto do Meio”
Nas estações de clima moderado, o vento e a chuva podem aparecer de repente e tornar desagradável uma longa caminhada; no Inverno, o frio cortante, o nevoeiro e o gelo, que torna a rocha perigosamente escorregadia, isolam a zona de visitantes e, no cimo do planalto Méjean, a cerca de mil metros de altitude, só ficam os seus habitantes permanentes: menos de quinhentas pessoas e cerca de vinte mil ovelhas. Não contando, claro, com os senhores da estepe e do mato, como as raposas e mamíferos de pequeno porte, uma infinidade de pássaros, e duas “estrelas” mais recentes: os abutres, extintos nos anos quarenta e reintroduzidos nos anos oitenta, e alguns cavalos de Przewalski, vindos da Mongólia para fugir à extinção.
Uns bons binóculos são indispensáveis para observar o vaivém incansável dos pássaros, que atravessam as ravinas em todos os sentidos, entrando e saindo dos seus ninhos instalados em buracos feitos na rocha. Mas mais do que tudo é preciso gostar de caminhar, para vencer a primeira subida da aldeia de Le Rozier até ao cimo do planalto, passando pelo rochedo de Capluc. Depois de algum tempo sobre uma pista pedregosa, feita de calhaus soltos, raízes levantadas e rochas lisas, gastas pelo tempo e pelos pés dos caminhantes, chegamos enfim ao cimo do Causse Méjean, que começamos por circundar pela direita. O trilho segue junto ao abismo, sempre a uma distância segura mas desaconselhável a quem sofra de vertigens, e permite-nos ver que o Jonte é agora um riacho fino no fundo do desfiladeiro que separa o Méjean do Causse Noir.
Entretanto, aquilo que visto de baixo nos parecia uma gigantesca parede vertical, vai-se abrindo na nossa frente em dedos, torres e chaminés, formas fantásticas esculpidas pela água e pelo vento. O grande bloco de pedra que atinge os cinquenta metros de espessura e parece coroar o planalto é, afinal, constituído por enormes pitões que se vão separando lentamente pelo efeito da meteorologia e da própria vegetação, que insistentemente se aninha em qualquer fissura da rocha. Algumas dessas formas têm nomes óbvios: a Jarra de Sèvres, por exemplo, ou a Jarra da China. Impressionantes pela forma e pelo tamanho, são também muito procuradas por todos os que gostam de escalada; é normal encontrar duas ou três pessoas penduradas em cada um destes monólitos, transformados em miniaturas pelo seu tamanho desproporcional, balouçando sem medo sobre a garganta.
Por aqui andam também os abutres, e o mais curioso é que temos de olhar para baixo para os ver, e não para cima, como seria normal. Planam silenciosamente sobre o vazio, para onde até dá medo olhar, e poisam sempre em lugares escondidos e inacessíveis. Mas é em voo que mostram o seu porte formidável, que atinge os dois metros e meio de geometria harmoniosa, projectando a sua sombra ruiva sobre o desfiladeiro e os enormes penedos por onde caminhamos.
O trilho faz um cotovelo rente à falésia, antes de trepar por um pequeno e estreito corredor de pedra. As marcas levam-nos subitamente para a direita, sempre ao longo da Jonte, para os últimos miradouros naturais antes de atravessar o Causse. E aqui está a razão do nome: Méjean significa, na linguagem local, “o do meio”. Para chegar à garganta do Tarn, do outro lado, é preciso atravessá-lo.
Do Jonte ao Tarn
As torres de pedra ficam para trás quando atravessamos esta ponta do planalto, mas o trabalho da água neste solo permeável dá-nos um contraponto: as grutas subterrâneas ou avens, onde estalactites e estalagmites parecem recriar em miniatura a paisagem exterior do Causse Méjean. Água à superfície é coisa rara na zona, e cria imediatamente um ponto de encontro para centenas de insectos, sem contar com os habitantes mais discretos do planalto, como as raposas, os javalis, os texugos e as ginetas. É certo que não podemos contar com a sua presença enquanto estivermos por perto, mas no silêncio da estepe e na sombra do bosque, é comum sentirmo-nos observados.
Um terço dos trinta e três mil hectares desta área está coberto de resinosas, sobretudo pinheiros-negros da Áustria. O trilho transforma-se num estradão arenoso que segue em direcção às aldeias de Volcegur e La Bourgarie, atravessando pequenos bosques de bétulas e carvalhos, que partilham com os pinheiros e os abundantes tapetes de flores azuis e amarelas a escassa água que o solo calcário permite reter; o resto do território parece coberto por estepe e arbustos, que alimentam a imensidão de rebanhos da zona. Esta é a parte menos empolgante do caminho, mas as sombras são óptimas para um piquenique, antes de continuar em direcção à segunda garganta.
A certa altura, depois de uma descida, avistamo-lo. Empoleirados num cabeço rochoso abrangemos torres e muralhas de um cinzento alaranjado, “pães-de-açúcar” cobertos de verde, silhuetas serrilhadas de pinheiros e, muito lá no fundo, a serpente verde do Rio Tarn, que separa este planalto do de Sauveterre. Para apreciar melhor a paisagem, fazemos um pequeno e ofegante desvio até um miradouro, que mais parece um enorme barco de pedra ancorado na encosta íngreme: o rochedo de Cinglegros. A garganta é aqui mais aberta do que do outro lado, e parece mais profunda. O rio é muito verde, talvez por reflectir a abundância de vegetação, e a paisagem está pintalgada por cistos perfumados, pequenos malmequeres e muitas outras flores de cores variadas; depois do arvoredo escuro da garganta do Jonte e dos bosques no cimo do planalto, este é um contraste agradável e primaveril, que resulta de uma maior exposição solar.
Lá em baixo, são também mais visíveis as aldeias abandonadas, de um extraordinário mimetismo, com a pedra das paredes e dos telhados a tentar confundir-se com a paisagem. Por trás de nós, o Méjean levanta-se em torres de pedra e cristas impressionantes que já tínhamos visto do lado do Jonte, mas o caminho aqui não é tão dramático, até porque a profusa vegetação não deixa ver os abismos de pedra por onde caminhamos. Subimos um pouco e, passado o colo entre os dois desfiladeiros, o caminho bifurca. Chegando de novo à ponta do planalto, reencontramos o nosso caminho: para baixo, regressamos a Capluc e à quietude da pequena vila de Le Rozier; para a esquerda, retomamos o caminho que já fizemos. O percurso durou seis horas, mas não resistimos e recomeçamos. Em menos de uma hora estamos de novo junto do Jarro de Sèvres, a tempo de assistir ao fim do dia com os abutres – e com outros companheiros silvestres de passeio, sempre discretos, que tal como nós apreciam o isolamento destas paragens.
Esculturas naturais
O Causse Méjean é apenas um dos quatro planaltos calcários da zona, que a força dos rios separou como ilhas ao longo de milénios, continuando ainda hoje o processo de aprofundamento das gargantas. Os outros três são o Causse Noir, o Sauveterre e o Larzac, mais baixos, mas com as mesmas características do Méjean. Esta é uma região muito rural, onde o equilíbrio natural se tem vindo a reconstituir, até porque as áreas habitadas são muito pequenas, e muitas das aldeias ficam praticamente despovoadas durante o Inverno. Curiosamente, algumas zonas da paisagem têm nomes de cidades. Dois dos exemplos, Nîmes-le-Vieux e Montpellier-le-Vieux, são aquilo a que os franceses chamam “caos de pedra” – um nome bem achado para uma extensão de estepe de onde se elevam rochedos de vários tamanhos e formas, distribuídos de forma caótica e com um aspecto geral de castelos em ruínas. Fica a dúvida sobre qual é o trabalho da Natureza, e onde começa o do homem.
Montpellier-le-Vieux, no Causse Noir, é terreno privado. Marcaram-se circuitos e cobram-se bilhetes para os percorrer. Divididos por dificuldade, dão-nos a conhecer uma das zonas mais características – e selvagens – da zona. Podemos caminhar horas, deambular entre estas “ruínas” naturais, que lembram castelos antigos, com torres, muralhas, ameias, tudo perdido no meio de pinheiros e árvores em flor. Os penedos, de formas espectaculares, têm nomes: o Coelho, o Navio, a Ânfora. Há “arcos do triunfo” naturais, por onde passamos para entrar em áreas de mato cerrado e miradouros estratégicos sobre a floresta. No total, são cerca de cento e vinte hectares de terreno calcário que estavam cobertos de vegetação, mas que a erosão tem vindo a escavar, alterando o traçado dos trilhos e esculpindo novas formas na rochas pálidas e moles que formam o planalto. De qualquer um dos miradouros, onde só se consegue parar em dias sem vento, a paisagem é sempre a mesma: uma belíssima amálgama de colinas rochosas temperadas de verde, que sobem, descem, e se encrespam até ao fim do horizonte.
E quando nos cansarmos de caminhar, podemos sempre visitar algumas das aldeias típicas da zona, ali bem próximas, como Longuiers, onde ainda não há muito tempo as casas eram feitas inteiramente de pedra, dos alicerces ao telhado, sem nenhuma estrutura de madeira como apoio.
Um planalto do fundo do mar
A zona dos “causses” é uma das mais características da região do Languedoc-Roussillon, no Sul de França, e o processo de formação das gargantas do Jonte e do Tarn conta-nos um pouco da história do planeta.
É difícil imaginar, mas durante a Era Secundária, há cerca de duzentos e vinte milhões de anos, toda esta zona fazia parte do fundo de um mar de águas mornas, não muito profundo. Os sedimentos de rochas das montanhas vizinhas, arrastados pela água das chuvas, e também as algas, peixes e crustáceos, foram-se acumulando e compactando, formando uma amálgama rija com cerca de seiscentos metros de espessura. A força da elevação dos Alpes estendeu-se até aqui, empurrando para cima este fundo de mar, até cerca dos mil metros, ao mesmo tempo que deu origem a fracturas brutais na sua “carapaça”, que abriram caminho à formação das gargantas: os rios aproveitaram estas falhas naturais e fizeram delas o seu leito, acelerando o processo de aprofundamento dos desfiladeiros, que ainda hoje continua.
Sendo o calcário uma rocha particularmente mole, é comum a sua degradação dar origem a formações mais ou menos fora do vulgar. Estas paredes calcárias que hoje vemos, levantando-se como fortalezas inexpugnáveis, são barreiras de pedras trabalhadas pelo tempo e pela água, por fora e por dentro; basta visitar uma das belas grutas da zona, como a famosa Aven Armand, para apreciarmos o belíssimo trabalho destrutivo da água no subsolo, que erode e dissolve as rochas, esculpindo formas espantosas. Cá fora, o mesmo trabalho é feito pela chuva, pelo vento e também pelas árvores equilibristas que enfiam as raízes na mais pequena fresta e chegam a rasgar blocos de pedra, separando-os do resto do planalto – e decorando a região com monumentos naturais dignos de nota.
Guia de viagens
Este é um guia prático para viagens às gargantas do Tarn e do Jonte, com informações sobre a melhor época para visitar, como chegar, pontos turísticos, os melhores hotéis e sugestões de actividades na região.
Quando viajar para Méjean
O Inverno é chuvoso e frio, e os nevoeiros diminuem a visibilidade; Agosto pode ser bastante quente, e aos fins-de-semana é quase certo que há grande concorrência nos trilhos. O Outono, a partir de Setembro, e a Primavera, são as melhores épocas.
Como chegar
Pode voar para Toulouse ou Montpellier, mas o melhor é chegar lá com veículo próprio: sair de Montpellier em direcção a Béziers, e tomar depois a estrada N9 em direcção a Millau, e daí a Le Rozier. De automóvel, pode ainda percorrer a estrada de Le Rozier a Meyrueis, ao longo do Rio Jonte, continuar pelo planalto até Ste. Enimie, onde pode visitar a Aven (gruta) Armand, e regressar a Le Rozier ao longo do Tarn, por Mostuéjouls.
Onde ficar
A área possui parque de campismo, casas de turismo rural e alguns hotéis. O melhor é consultar o turismo de Le Rozier, na rua principal junto aos correios, e indagar.
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Gastronomia francesa
Não faltam restaurantes, ou não estivéssemos em França. Um deles é muito bom pelas vistas sobre o Tarn: o Chez Louis, no Mas de la Font. O Sul é conhecido pelos saborosos pratos mediterrânicos, bem temperados com ervas locais, como a bouillabaisse de três peixes ou a tarte pissaladière, com tomate e anchovas. No planalto fabrica-se um bom queijo aparentado com o Roquefort: o Bleu des Causses.
Informações úteis
Seja qual for a época, aconselha-se levar um corta-vento impermeável, botas de marcha ligeiras, água e alguma comida, uma vez que este percurso circular demora cinco a seis horas a completar. O turismo local fornece todas as informações e mapas sobre as possibilidades de caminhadas na zona. O turismo da região do Tarn fica na Av. Jean Monestier 33, 48400 Florac. Para mais informações sobre as gargantas do Tarn e do Jonte visite o site do Parque Natural das Grands Causses.
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