A dois passos da Côte fica um paraíso selvagem de encanto alpino, onde camurças e cabras-montesas apascentam por entre milhares de gravuras rupestres. Uma caminhada pelo Parque Nacional do Mercantour, Alpes franceses.
Mercantour, França – Montes de Maravilhas
Os apreciadores de montanha não precisam de ir mais longe. Os Alpes terminam mesmo ali, na Côte d’Azur, numa apoteose de pedra que se ergue em agulhas e desfaz em penedos, cercando lagos e pondo à vista vestígios humanos com milhares de anos. É mesmo possível deixar os amigos a banhos e esticar as pernas monte acima, em pleno Parque Nacional do Mercantour, um dos mais bonitos de França.
Antecedendo o Parque, à medida que nos afastamos da costa vão surgindo velhas aldeias, pirâmides de casas cujo vértice é, inevitavelmente, o campanário aguçado de uma igreja. Luceram, Roubion ou St. Sauveur-sur-Tinée são apenas alguns destes locais, que assinalam uma presença humana igualmente antiga. A beleza da região e a sua riqueza a nível de património biogenético e cultural vai-se anunciando, mesmo antes de entrarmos na área do Parque Nacional. Este é o único Parque francês onde coexistem a vegetação mediterrânica (oliveiras e carvalhos, por exemplo), florestas, charnecas e a vegetação alpina propriamente dita. E, a dois passos das aldeias, já podemos encontrar verdadeiros tesouros da flora local, como dezenas de tipos diferentes de orquídeas, ou algodão do Árctico. Umas dúzias de passos mais acima encontramos os primeiros rebanhos de camurças ou cabras-montesas e ouvimos os silvos das marmotas – a menos que seja Inverno, e estas se encontrem no invejável descanso da hibernação. A paisagem é feita de montanhas cinzentas, picos aguçados, vales cavados há dez mil anos por enormes glaciares, lagos verdes ou azuis rodeados por íngremes paredes de pedra, em cujas fendas nasce a rara e endémica Saxifraga florulenta, símbolo do Parque.
Em St Martin-Vésubie estamos o mais próximos possível de tudo isto. O Turismo local fornece folhetos que explicam as diversas maneiras de explorar a área, desde caminhadas curtas na periferia da aldeia, até percursos de automóvel que passam por miradouros sobre o belíssimo vale do Rio Vésubie. Para conhecer o Parque é preciso caminhar, até porque não há estradas que nos mostrem os magníficos lagos Autier, Trécolpas, o alto de Valmasque ou o extraordinário Vale das Maravilhas. Em contrapartida há cerca de seiscentos quilómetros de trilhos bem assinalados, que atravessam a área em todas as direcções. Alguns permitem-nos conhecer, em apenas um dia, muitas das maravilhas destes Alpes mediterrânicos. O Lago Trécolpas é uma delas.
O anfiteatro de pedra onde se situa é dos locais mais misteriosos do Mercantour, sobretudo quando jogos de luz e nuvens revelam uma ilha minúscula, verdadeira Avalon alpina. Para ver o lago de cima, atravessamos uma das áreas favoritas das cabras-montesas, por um antigo caminho de contrabandistas que leva a uma “fronteira” natural com a Itália, no colo de Finestra. Da passagem de Ladres vemos a mancha redonda e escura do Trécolpas. Este é apenas um entre centenas de lagos de variados tamanhos, feitios e cores, como o de Fenestre, o Autier, o Noir, o Vert ou o Basto – todos eles distribuídos pela mesma zona, mas a altitudes diferentes. Em volta, as nuvens desenham aguarelas japonesas nos picos serrilhados, situados entre os dois e os três mil metros de altitude.
Desde a Idade do Bronze que a área é frequentada durante o Verão por grupos migratórios de pastores com os seus rebanhos, aproveitando os pastos e a abundância de água. O monte Bégo, com quase três mil metros de altura e uma enorme concentração de ferro, sempre atraiu grande quantidade de relâmpagos durante as frequentes tempestades alpinas. Por motivos religiosos – seria o intimidante Bégo um lugar de peregrinação? – ou para passar o tempo, muitos foram deixando marcas da sua presença em abundantes grafitos no sopé da montanha. O mesmo fizeram soldados romanos, foragidos em busca de refúgio e simples caminhantes do início do século. O resultado é considerado hoje como a maior exposição de arte espontânea ao ar livre: o Vale das Maravilhas, mais concretamente cerca de trinta quilómetros quadrados em redor do monte Bégo. Classificado como Monumento Nacional, procura-se agora proteger o que durante muito tempo esteve à mercê de “coleccionadores de arte” que destruíram muitas gravuras ao tentar levá-las consigo, ou ao escrever o nome por cima. Da casa-refúgio do vale saem agora visitas guiadas, que nos fazem descobrir as gravuras mais importantes (algumas já são réplicas), ao mesmo tempo que evitam que calquemos muitas delas, minúsculas, desenhadas nas pedras do chão.
De entre tudo o que mexe, o mais fácil de observar e de ouvir são as aves que enchem de música as florestas frondosas das zonas mais baixas, e os seus vizinhos esquilos, em correrias nervosas pelos troncos. As cabras-montesas afastam-se majestosamente, enquanto as camurças, mais tímidas, espreitam por detrás – ou do alto – dos penedos. Curiosas e histéricas, as camurças olham para nós e guincham, antes de retomarem a toilete ou os banhos de sol. Veados, javalis e lobos, estes últimos recentemente regressados ao Mercantour, vindos de Itália, são praticamente invisíveis. Com tantas maravilhas para descobrir, fica pouca vontade para ir molhar os pés à superlotada Côte.
Grafitos da idade do bronze
Há quem lhe chame uma grandiosa manifestação de fé e um monumento histórico único. A verdade é que a primeira gravura já foi feita há mais de quatro mil anos e ainda não é possível afirmar com exactidão o que deu origem a esta tremenda concentração de desenhos simbólicos e figuras, espalhados pelos vales de Fontanalbe e, sobretudo, pelo Vallée des Merveilles – nome mais que merecido para a área que guarda as gravuras mais importantes do conjunto, no sopé do monte Bégo. Diz-se que este foi lugar de peregrinação entre 2.500 e 1.700 da nossa Era, mas a verdade é que ainda falta provar o carácter religioso das milhares de figuras que deram o nome ao vale.
Os mais de dois mil e oitocentos metros do monte Bégo, cuja alta concentração de minério de ferro é visível na cor e no peso das rochas, atrai os relâmpagos durante as frequentes tempestades alpinas. Mesmo nos dias de hoje não são raros os acidentes mortais com caminhantes, perdidos no nevoeiro ou apanhados por uma trovoada. A onomástica dos lugares alude ao carácter mágico da área: Vale das Maravilhas, Cimo do Diabo, Vale do Inferno, etc., o que já muito diz sobre as características misteriosas e mesmo assustadoras que o monte teria para os nossos antepassados. Mas a única certeza que existe é a de que este é um dos mais importantes conjuntos de arte rupestre da Europa. São mais de 40.000 as gravuras que já foram encontradas nas rochas alaranjadas da zona, desde as enormes fragas polidas pelos glaciares até aos pequenos seixos que resvalam sob os nossos pés. As imagens com chifres são as mais frequentes – provavelmente uma representação da fertilidade, uma vez que o touro era o seu símbolo – mas também há abundância de facas, quadrículas, círculos e espirais, com tamanhos que vão dos três ou quatro centímetros até a um metro.
A partir da Idade Média, alguns lugares foram tomando nomes mais de acordo com a época – como o Lago de Santa Maria, por exemplo. O pior é que também se “corrigiram” muitas das gravuras, uma vez que o touro passou a ser um símbolo demoníaco, e são muitas as que se transformaram em cabeças e figuras humanas às mãos dos novos “artistas”, como que para exorcizar tanta imagem do diabo; uma das mais célebres é o “Cristo”, uma gravura com chifres que alguém conseguiu transformar numa cabeça redonda com uma coroa de espinhos!
Por razões de segurança deste património único, as imagens mais importantes foram retiradas e levadas para o Museu de Tende. As suas réplicas estão assinaladas por placas, e os que não querem uma visita guiada ao lugar são vigiados por guardas à paisana, que aparecem com um sorriso indicando uma ou outra gravura, verificando ao mesmo tempo que ninguém anda de martelo e cinzel, a dar mais “um jeitinho” nos velhos grafitos.
Alpes, no centro da Europa
O maciço alpino estende-se por 240.000 quilómetros quadrados, numa espécie de arco com uns 1.000 quilómetros de comprimento e uma largura que não ultrapassa os 250. São oito os países que partilham as suas montanhas: a França, o Mónaco, a Eslovénia, o Lichtenstein, a Áustria, a Itália, a Alemanha e a Suíça. O seu ponto mais alto são os 4.810 metros do Monte Branco, altitude máxima do ocidente europeu; no entanto, o pico mais alto da Europa é o Elbrus, na Geórgia (5.642 metros).
Este mosaico linguístico e cultural é também um “pulmão” verde no centro do continente, cuja importância é bem conhecida. O Parque Nacional do Mercantour é apenas uma das três áreas alpinas protegidas, só em França. Fundado em 1979, engloba oito cumes com mais de 3.000 metros, vales e lagos de origem glaciária. O seu ponto mais alto é o monte Gélas, a 3.143 metros de altitude. A riquíssima flora conta com mais de 2.000 espécies de flores, 200 das quais são raras e 40 endémicas; de entre as últimas, a mais conhecida é a emblemática Saxifraga florulenta. Formada por um círculo de pequenas folhas verdes, diz-se que floresce uma vez cada trinta a cinquenta anos, entre Julho e Outubro, e é uma das espécies mais rigorosamente protegidas do Mercantour.
A fauna é igualmente variada e numerosa, com números superiores a 6.300 para as camurças (eram cerca de 1.800 aquando da criação do Parque), 320 cabras-alpinas (Capra ibex), 1.200 muflões (outro tipo de cabra-montês), 37 casais de águias, 600 veados, e um grande número de marmotas e outros pequenos mamíferos e de aves, como as perdizes da neve. Do património cultural, destacam-se as quarenta milhares de gravuras do Vale das Maravilhas. Na zona interior, o “coração” do Parque, não é permitida a presença humana permanente; existem apenas algumas casas de pastores e refúgios de montanha, utilizados sazonalmente durante o Verão.
Guia de viagens ao Mercantour
Este é um guia prático para viagens ao Parque Nacional do Mercantour, com informações sobre a melhor época para visitar, como chegar, pontos turísticos, os melhores hotéis e sugestões de actividades na região.
Localização geográfica do Mercantour
O Parque Nacional do Mercantour situa-se em território francês, nos chamados Alpes Mediterrânicos. Fica apenas a uma hora da cidade de Nice, se seguirmos a estrada de Digne (RN202) e a D2565, até St. Martin-Vésubie, uma das entradas do Parque.
Como chegar
Uma vez em St. Martin, o melhor é informar-se no Turismo local ou na casa do Parque, adaptando a visita da zona aos seus interesses com as informações que lhe forem dadas. Um Parque Nacional visita-se (ou deveria visitar-se) sempre a pé. No entanto, é necessário veículo próprio (ou táxi), para aceder ao início dos trilhos. O que leva ao Vale das Maravilhas começa em Countet, perto da aldeia de Roquebillière; para aceder ao do Lago Trécolpas, toma-se a estrada D189, à direita, depois de Boréon. Ambos os trilhos começam onde termina a estrada, e estão assinalados por placas e/ou marcas de GR (“Grande Randonnée”, ou Grande Caminhada), brancas e vermelhas.
Hotéis em St. Martin
Em St. Martin há campismo, hotéis e pequenas pensões. La Bonne Auberge tem duas estrelas e fica na Allée de Verdun; o Hotel des Trois Ponts é mais modesto e fica na Rue du D. Cagnoli, 27. No Vale das Maravilhas, só há o refúgio guardado acima citado; deve levar o seu saco-cama. É perfeitamente possível visitar o vale e regressar para pernoitar na aldeia.
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O que fazer
Caminhar, apreciar os Alpes no seu melhor, fotografar, ver as marmotas e as camurças desdenhosas, que viram sempre as costas aos visitantes.
A não perder
O Vale das Maravilhas, que só por si merece a deslocação, mas também o Lago de Trécolpas e o Cimo de Valmasque (Baisse de Valmasque).
Seguro de viagem
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