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Casa da Padaria, a discrição do xisto

Por Ana Isabel Mineiro

A Casa da Padaria fica no extremo da histórica povoação e confunde-se na paisagem com a natural discrição do xisto da aldeia de Piódão. Levanta-se na berma de um caminho sossegado a dois passos do centro – tal como o resto de Piódão. Visita à unidade de turismo rural Casa da Padaria.

Casa da Padaria

Que mais dizer da aldeia de Piódão, já apelidada de “presépio”, “aldeia mais portuguesa de Portugal”, capa de livros e musa de pintores? É por demais visível a beleza e o carácter irrepetível da povoação logo ao descer a Serra do Açor, mesmo antes de percorrer as suas ruas, vielas, escadarias e pracetas de xisto. Encaixado de forma natural na encosta, o casario forma uma unidade harmoniosa, uma só peça cinzenta, aresta sobre aresta numa fusão natural de pedra.

Algumas pinceladas de branco iluminam o conjunto, como a mimosa igreja da praça central, mas apenas uma mancha altera verdadeiramente a uniformidade da aldeia: um restaurante recente, de arquitetura moderna, que foi autorizado (?) a pintar a fachada de vermelho. Desde 1978 que Piódão é Património Nacional, Aldeia Histórica desde 1994, sujeita a normas estritas de construção e reconstrução que não têm permitido as alterações a que assistimos em muitos outros lugares do país; esperemos que não tenha sido aberta a caixa de Pandora, que uma aldeia tão pequena não aguenta muitos destes arrufos sem se afundar por completo no charco da vulgaridade.

Em tempos de maior entusiasmo, “a Câmara limpava o reboco e os telhados gratuitamente, havia apoios ao turismo de habitação”, conta-nos Irene Lopes, proprietária da Casa da Padaria. “A casa tinha um varandim e reboco, que a Câmara retirou. Foi levado o projeto à Direção Geral de Turismo para aprovar a arquitetura, e durante dez anos ficou o compromisso de não usar a casa para outro fim que não fosse o turismo.” Foi classificada como Casa de Campo, que é a classificação usada nas Aldeias Históricas – “mas a casa é na aldeia, não é no meio do campo”, protesta Irene.

Situada na rua que sai de Piódão em direção aos montes e campos de Chãs d’Égua, a Casa da Padaria ergue-se altaneira, com uma fachada única e simples de dois andares equilibrados sobre um rés-do-chão, flanqueada à esquerda por oliveiras e à direita por uma escadaria estreita que leva a um pequeno pátio traseiro onde florescem hortênsias roxas e cor-de-rosa.

O último andar foi acrescentado à casa original, construída pelo pai nos anos 50, para permitir a criação de quatro quartos, e as únicas garridices que sobressaem da pedra austera são as portas e a caixilharia de madeira das janelas, pintadas a branco e com uma versão infantil do azul do céu, que torna mais leve o fatiado escuro de xisto estendido até ao telhado negro de lousa: “antes eram todos muito religiosos: podia não haver para comer, mas havia sempre para pintar as portas da cor do céu…”

A campainha é uma sineta. Toca-se agitando uma pequena corrente que tem o condão de fazer abrir a porta; caso contrário, um dos vizinhos vai com certeza descobrir a proprietária ali perto, avisando-a da chegada de forasteiros. Uma fiada de cruzinhas de madeira por cima da porta é outra marca da religiosidade local. São feitas com os ramos de oliveira, alecrim e louro que vão à igreja na Páscoa, e colocadas nos umbrais para proteção da casa e das suas gentes no dia de Sta. Cruz.

A casa não tomou o nome por acaso: era, de facto, a padaria local, pertença da família, fornecedora de Piódão e arredores. As raparigas vinham buscar o pão em cestos à loja no rés-do-chão, que mantém o seu balcão, cabazes e balanças, mas que foi transformada em receção. De ambos os lados existiam arrecadações, separadas por tabiques de madeira, e hoje a entrada principal faz-se por uma delas, metamorfoseada em sala de estar. “Em 1970 havia cerca de sessenta crianças na escola, mas não chegava vender só em Piódão o pão que ali se fazia – as raparigas iam de porta em porta com o cesto à cabeça, e às aldeias mais distantes ia um senhor de burro, que avisava da chegada com uma corneta ou deixava o pão na venda; depois, ou se vendia ou era devolvido e ia para os animais”, conta Irene Lopes.

Depois da saleta e da receção fica a escadaria que leva ao primeiro andar (o outro lado da escada aloja de forma permanente Irene e a sua irmã), onde fica o forno, peça central de uma sala espaçosa onde uma grande masseira, agora adaptada às novas funções de aparador, ajuda a não deixar esquecer que estamos numa padaria.

Duas fotos na parede relembram o fabrico do pão e a casa tal como era antigamente; de um dos lados ainda está poisado o cântaro com que se retirava a água que aquecia num depósito do forno, sempre pronta a usar quando este estava em funcionamento.

Louceiros e louças antigas completam uma coleção que já começou no andar de baixo, e que abrange candeeiros a carbureto, balanças, cestos do pão, lanternas, panelas de ferro, talhas para guardar a carne de porco em azeite, uma antiga máquina de costura, outra de escrever – e ainda as botas do avô, com solas de madeira cardada. A surpresa de encontrar o forno no primeiro andar desaparece, mal se abre uma janela lateral: as encostas são íngremes, os campos nascem em socalcos armados pelas mãos do homem e as casas a eles se encostam; a entrada para a sala do forno pode ser feita directamente pelo pequeno pátio das hortênsias nas traseiras, que fica no socalco imediatamente acima. Podemos portanto subir as escadas por fora e entrar pelas traseiras ou entrar pela frente e subir as escadas do interior da casa, dependendo da meteorologia, que já foi bem mais rigorosa e menos surpreendente do que agora: havia mais neve e gelo mas menos enxurradas que arrastam pontes, como aconteceu há um par de anos, logo a seguir ao verão dos grandes incêndios.

Depois do falecimento do pai, e do irmão mais velho seguir para o serviço militar obrigatório, entre 1972 e 1998 a padaria esteve fechada e serviu apenas como arrecadação. As irmãs, sozinhas, não podiam tomar conta do negócio. A casa foi finalmente recuperada em 1999, com xisto das pedreiras da Serra do Açor e o trabalho de um empreiteiro local, já com intenções de ser dedicada ao turismo. Desapareceram os tabiques de madeira e uma segunda área de arrecadação e casa de banho foi transformada em cozinha, para que pudesse ser habitada em permanência. Os quartos de hóspedes, todos virados para a frente e com excelentes vistas sobre a serra e a povoação, concedidas pelo segundo andar onde se situam, nasceram debaixo do telhado de lousa igualmente restaurado.

Despida de estuques, a casa revelou a rudeza da pedra por fora, casando com a aldeia. O interior revestiu-se de branco, nasceram tetos falsos de madeira escura, que na sala contrastam com o vermelho dos tijolos do forno.

As mobílias clássicas e os objetos antigos continuam no interior o tom rústico e arcaico da construção – e o forno continua a aquecer a sala ou a fazer algum assado quando convém. Geralmente o turista requer apenas o pequeno-almoço de cortesia com o quarto, e pode assim provar as compotas caseiras, o requeijão e o queijo fresco da zona, o mel da serra. Muitos compram depois os produtos, para prolongar o prazer em casa. Chama-os o exterior, os grandes passeios pelo vale que apenas pedem um singelo piquenique sobre uma destas pedras de xisto que não foram transformadas em casa, valorosas mas discretas. A maior parte dos que ficam são portugueses que descobrem a antiga padaria através da internet ou de algum guia de viagens e muitos deles regressam, alguns com a fidelidade e a discrição de amigos.

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Ana Isabel Mineiro

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