Algo inesperado me sobressalta no mercado de Dalanzadgad, em pleno Deserto de Gobi, algures numa Mongólia fascinante mas profunda. Recordações que me fazem cantarolar o refrão de uma canção. E sorrir.
Jamais me passaria pela cabeça acontecimento tão surreal em pleno Deserto de Gobi. No coração de uma Mongólia profunda e acessível apenas por estradas que não o são, caminhos tortuosos roubados à aridez pedregosa de planícies acastanhadas ou a leitos de rio esvaziados de água. Um lugar onde os quilómetros se medem em horas e o tempo passa ao ritmo lento de um camelo em movimento.
Partimos da capital Ulan Bator munidos de um fogão a gás, vários conjuntos de pratos e talheres e alguma comida, víveres indispensáveis para ultrapassar a monótona gastronomia mongol baseada quase exclusivamente em carne de carneiro. É inacreditável como toda uma população sobrevive comendo carneiro a todas as refeições, cozinhado é certo de várias formas mas de sabor invariavelmente semelhante, cheiro forte e penetrante, enjoativo. E é assim em todo o país. Exasperante.
Mas foi, aliás, ao sabor de um prato de carneiro que o grupo para esta expedição todo-o-terreno começou a tomar forma. Na companhia de duas simpáticas suíças, homónimas por casualidade, esboçou-se ali mesmo, entre duas garfadas da dita carne, aquilo em que esta expedição se transformou: uma longa viagem numa carrinha russa de tracção total por diferentes partes da Mongólia rural, do Deserto de Gobi aos grandes lagos no norte do país.
Conduz a carrinha Nêma, mongol de nascença, óptimo condutor e pessoa de confiança mas incapaz de pronunciar mais do que umas muito básicas palavras em inglês. Acompanham-nos ainda dois irmãos israelitas – Ofri e Eilon -, excelentes companheiros e viajantes experientes e ainda o canadiano Christian que, por inacreditável coincidência, se cruza de novo no meu caminho. Descubro que Ofri saiu de Israel há já quatro anos, mal terminado o prolongado e obrigatório serviço militar. Viaja por onde lhe apetece até o dinheiro terminar, escolhe um poiso temporário para reabastecimento financeiro trabalhando nalgum ofício rentável, volta à estrada, trabalha de novo, conhece o mundo. “Quando voltas para Israel?”, interrogo curioso. “Não tenho planos para regressar”, responde com desarmante naturalidade.
Parámos, então, na pequena mas comparativamente importante cidade de Dalanzadgad para compra de mantimentos fundamentais para os próximos dias da expedição. Pão, esparguete, tomates, pepinos, cebolas, água e o que mais se encontrar. E papel higiénico. No mercado local, apinhado de gente vinda provavelmente de bastante longe, um burburinho próprio dos negócios de rua é abruptamente abafado por sons oriundos não se percebe bem de onde. De um café, de um automóvel, sim, do interior de uma carrinha igual à nossa estacionada nas proximidades – identifico finalmente.
Reconheço, como que atordoado, a sonoridade ecoando nas paredes das casas, a voz, aquele misto de inglês e português estrangeirado que a todos inundou os tímpanos meses atrás. Não quero acreditar, é por demais surreal. Mas não é sonho. Estou no meio de um mercado de rua, na praça central de uma povoação algures no Deserto de Gobi, rodeado de pessoas de face diferente, costumes estranhos e trajar típico, longe de casa, muito longe, ouvindo o hino do Euro 2004 pela voz da luso-canadiana Nelly Furtado. Inacreditável. Mas não resisto a cantarolar o refrão, sorrindo, sorrindo abertamente tal qual um emigrante desempoeirando memórias antigas do seu querido país. Uma partida pregada pelo Deserto.
Sobre o Gobi – palavra que significa ela própria deserto -, descubro que não chega nunca a ser um mar de areia e dunas sem fim à vista. É um terreno cada vez mais árido à medida que a fronteira sul da Mongólia se aproxima, mais pedregoso e com menos vegetação. Mas fértil em vida animal. Povoações são raras. Pequenos grupos de pessoas, normalmente unidas por laços familiares, formam espaçadamente minúsculas comunidades compostas por três ou quatro circulares pedaços de tradição a que os mongóis chamam gers – a habitação mongol por excelência. Vivem incrivelmente isolados, sem vizinhos nas proximidades e aparentemente afastados do mundo que os rodeia. Aparentemente, pois não é raro vislumbrar um rasgo de civilização moderna e tecnologicamente desenvolvida nesses rústicos lares, em mais uma insólita imagem nestas paisagens longínquas. Antenas parabólicas. E já não me surpreenderia se também aqui novos e velhos cantarolassem aquela melodia que me sobressaltou no mercado de Dalanzadgad.
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.
O deserto invoca o deserto. A terra parece ter uma crescente receptibilidade à solidão. Lugar que invoca e provoca. Urra!. Estou perto de um lugar chamado Edene na Mongólia, coraçãozão do Gobi. Lembro de Atacama porquanto me lembra Atacama. A vastidão ao derredor não tem fim. O bege cashmere do nivelado geral não aceita verde. É absoluto. Aceitou o preto da engenharia rodoviária que lá me levou. “From the things a man builds maybe the road is the one that most suggests him the fast, the transitory and the ephemeral in life“…:)
Continuo a viagem a 600 km a sudeste da capitalzona Ulan Bator, perto da fronteira com a China. O landscape não se altera com a velocidade. Parece que o negro sideral por onde viajamos se transmuta num azul mais forte quando nos desertos. Se o religioso francês Charles de Foucauld – o São Paulo do Saara – sentiu o silêncio absoluto naquele pleno deserto a 1000km de Argel onde viveu no ano 1900, hoje não seria mais possível. É que um jato assim me fez concluir. Diviso-o cruzando na vastidão celeste acima provavelmente numa rota Tóquio-Europa. O rastro branco fica mais branco naquele mundão do espaço sem nuvens. E o trovejado das turbinas quebra aquele silêncio que só Charles de Foucauld e seus contemporâneos puderam experimentar…:)
E naquele mundão oriental um visitante pode ser um intruso, surpreendido pelo paradoxo de paradigmas. Desloco nivelado, solo arenoso 1/2 pedregulhado, raríssimas gramíneas quase invisíveis, abro minha própria estrada com simples rastro da caminhonete. Nada me impede, pois na frente não há nada, como que um vácuo no horizonte estupendo e sem fim. Magnífica a coisa. Diviso então um paradoxo de paradigmas. Depois do nada e no meio do nada, aparece como que um espectro uma barraca branca circular de cuja única porta irrompe uma criatura humana. 2 cachorros vem bravos ao meu encontro. O irmão humano me fita imóvel aquele súbito, ilustre, intruso e fugaz visitante e os cachorros latem. Eu não sei o que passou na minha cabeça porquanto do insólito do paradoxo do limite da sobrevivência humana e animal. Bom, talvez os latidos dos cachorros foram ouvidos em Ulan Bator pois o livríssimo descampado ao derredor é extremamente aberto ao extremo…urra!!…:)