Sigo para o Espírito Santo, considerado o Estado mais perigoso do Brasil. Passeio por lugares sem vestígios de violência, conheço o trabalho artesanal das Paneleiras de Goiabeiras e termino a semana num povoado que mudou de localização devido ao avanço implacável das dunas. E é aí, nesse pequeno éden chamado Itaúnas – a capital capixaba do forró -, que me apercebo que a lei da bala ainda impera, de facto, nalgumas zonas do Espírito Santo.
Rezam as estatísticas que o Espírito Santo é o Estado mais perigoso do Brasil. É o reflexo de inúmeros assassinatos e crimes violentos que ocorrem diariamente nos bairros periféricos da capital Vitória. Mas lembro-me de ser adolescente e alguém contar uma chalaça a propósito de médias e estatísticas que se resumia à seguinte ironia: “se um homem comer um bife e outro nenhum, em média, cada um comeu meio bife, logo, estatisticamente, estão ambos bem alimentados”. É um óbvio absurdo mas é exactamente o que aparenta acontecer no Espírito Santo. Isto é, ao lado de alguns lugares com índices inacreditáveis de violência – que brutalizam as estatísticas oficiais -, outros há absolutamente tranquilos. Foi a estes últimos que Tadeu me levou.
Tinha conhecido o fotógrafo Tadeu Bianconi durante as comemorações do Inti Raymi, em Cuzco, Peru. Alguns meses depois, quando o relógio batia as cinco horas de uma manhã quente e húmida, já ele se encontrava à minha espera no terminal rodoviário de Vitória – a sua cidade. “Tenho muitas coisas para te mostrar no Espírito Santo; vamos começar pelas paneleiras” – disse, de supetão.
O ofício está inscrito na lista do “Património Cultural Brasileiro”. Dizem, aliás, que as paneleiras são a “cara” do Espírito Santo. “Panela de barro, a raiz da cultura capixaba” – podia ler-se num folheto promocional do trabalho das paneleiras da região de Goiabeiras. Quando lá chegámos, estavam a preparar, ao ar livre, uma fogueira para a queima das panelas. No interior do armazém, as mulheres modelavam, raspavam e poliam as peças de barro – as fases anteriores à queima. Após a queima, as panelas eram açoitadas (pintadas) com uma vassoura mergulhada em tinta de tanino, um produto natural obtido da casca de uma árvore do mangue. Obtinham-se, assim, peças negras de indiscutível beleza, resultado de um ofício genuinamente tradicional e característico da região.
Dias depois, Tadeu conduziu-me pelo litoral sul do Espírito Santo. Pude então apreciar o quotidiano de uma região costeira isenta de turistas. Os estrangeiros praticamente desconhecem o estado e os brasileiros – principalmente mineiros e capixabas – só começam a invadir as cidades de veraneio lá para o mês de Novembro.
Assim sendo, deleitei-me com as coisas simples de lugares igualmente simples. Como aquele vendedor de abacaxi, em Anchieta, que tinha a sua velha furgoneta estacionada no lugar de sempre, com os abacaxis pendurados na carcaça da viatura. Ou aquele outro homem, mais velho, que lia tranquilamente o jornal do dia, sentado numa cadeira de plástico na Praia da Areia Preta, em Guarapari. O areal era dele, só dele, e nem a visão de um enorme prédio, na ponta da curva da baía, abafava a tranquilidade do momento. Seguimos viagem.
À chegada a Itaipava, notava-se um movimento de homens de capa plástica azul e ar expectante. Eram carregadores e aguardavam ordens para descarregar o peixe de um atuneiro que tinha chegado à praia pouco antes. Passados alguns minutos, os homens entraram em acção. Descarregavam no ombro, para terra firme, um a um, os pesados atuns. Tudo muito mais primitivo do que já havia visto, por exemplo, na ilha do Faial.
Dias depois, com o cheiro a maresia entranhado e curioso com a história invulgar de um lugarejo mais a norte, haveria de prosseguir viagem até Itaúnas. E Itaúnas tem, de facto, um passado curioso. É um povoado localizado próximo da fronteira com a Bahia e que já foi obrigado a mudar de lugar devido ao avanço implacável das dunas. “Esta é a foto da última família a deixar a velha Itaúnas” – disse-me Apoena, afável anfitrião no povoado, apontando para uma fotografia tirada pelo seu pai. Itaúnas assentou então algumas centenas de metros terra dentro e vive agora do turismo. Mantém as ruas de areia e terra batida, o ritmo de um éden tropical e o ar de aldeia de pescadores artesanais. Aqueles com quem fui pescar, certo dia, debaixo de um calor abrasador, pelos igarapés das proximidades.
Caminhando sem rumo pelas ruelas de Itaúnas, veio-me à memória a cearense Jericoacoara – um lugar fascinante que já tive o privilégio de conhecer. O charme de “Jeri” é incomparavelmente maior mas o ambiente em Itaúnas, à parte a ausência de gente, era em tudo semelhante. Tivesse chegado uma semana antes e teria vivenciado uma Itaúnas diferente.
Ainda havia cartazes na cidade a anunciar: “Festival do Forró 2005”. O festival é o acontecimento mais importante de Itaúnas e o responsável pela fama que a povoação granjeou de capital capixaba do forró. O assunto permanecia na boca de todos. “Se tivesses vindo na semana passada ias ver a loucura que foi” – disseram-me, a propósito do evento. Milhares de pessoas unidas pelo prazer de uma dança sensual como o forró, em que o contacto físico é permanente e provocante. Imagino a “loucura” que terá sido. Mas essa foi apenas a parte boa das festividades.
Constou também que, durante o festival, ocorreram inúmeros roubos e assaltos em Itaúnas. De simples actos de carteiristas até assaltos a lojas e restaurantes, de tudo um pouco aconteceu. Num lugar tão pequeno como Itaúnas, as proporções dos furtos foram “sem precedentes”. “Gente de fora” que acorreu a Itaúnas durante a semana do forró com esse objectivo maléfico. Mas também nativos. E era isso o que mais irritava os moradores. Ao ponto de, à boa maneira de uma terra sem lei, terem aparentemente tomado em mãos a resolução do problema. “Dois já morreram” – disse, certa noite, à mesa de um bar, um morador de Itaúnas já com umas cervejas a soltar-lhe e língua mais do que o suposto. E acrescentou: “os outros dois já estão encomendados… em quinze dias”. Se isto acontece na pacata Itaúnas, talvez as estatísticas tenham alguma razão.
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.
Comentários sobre “Forró à lei da bala, em Itaúnas”
Filipe, uma delícia seus textos e sua viagem. Tenho te acompanhado já há alguns meses e saboreado esta aventura como se participasse dela. Gostaria apenas de salientar que a cidade capixaba chama-se “Anchieta” e não “Anxieta” como você escreveu. Boa viagem e até a próxima.
Comentário enviado por Tânia em 11.SET.2005 – 20:28
Felipe, ontem foi a 1ª vez que li um texto escrito por você, pena que não gostei do artigo. Talvez por ser uma capixaba apaixonada pelo estado em que nasceu e viveu: Espírito Santo. É verdade que a criminalidade do meu estado aumentou (mas só aqui em Lisboa sofri um assalto à mão armada, facto inédito na minha vida), mas ainda não se compara ao Rio de Janeiro, onde já se tornou algo banal falar sobre assaltos e sequestros… De qualquer forma você poderia salientar as belezas que o meu estado tem: Lindas praias, montanhas, pessoas animadas e simpáticas, está entre as cinco melhores cidades para se viver devido ao seu crescimento e potencial para abertura de novos negócios, estando o turismo e petróleo em expansão, lembrando que mesmo nas cidades pacatas como ANCHIETA, Itaúnas, Guarapari, o turismo cresce a cada ano. Espero que na próxima vez que for visitar o Espírito Santo, possa ver e mostrar as belezas da “Cidade Presépio”.
Comentário enviado por Flávia Cristina em 11.SET.2005 – 23:28
Tem sido um gosto muito grande saborear as tuas incursões por esse mundo fora! Parabéns ao tio! Acabei de ver as fotos da Matilde!
O meu filho pergunta como foi Manaus. Foi pena não se encontrarem por lá!
Um beijo enormeeeeeee!
Comentário enviado por Marta Oliveira em 11.SET.2005 – 23:43
Obrigado, Tânia, pela correcção.
Flávia, eu escrevo crónicas de viagem. Quer isso dizer que relato as impressões que me são dadas a observar num dado momento, as experiências vividas, as emoções sentidas, as pessoas que conheço. Gostei muito do Espírito Santo e escrevi sobre algumas coisas simples e belas que presenciei, e alguns lugares bonitos onde estive. Mas não podia, de forma alguma, ignorar o que ouvi em Itaúnas…
Grande abraço a todos.
Comentário enviado por Filipe Morato Gomes em 12.SET.2005 – 15:15
Amigo! há algum que tempo que não te visitava aqui no site. Fico contente por saber que tudo corre bem. Continuas um “croniqueiro” top. E fazes com que nós, que por cá ficamos, possamos ter acesso a lugares fora dos roteiros…
Continua!!! As fotos continuam de grande nível!
Comentário enviado por Paulo Pereira em 12.SET.2005 – 22:21
Gralha, my man…
Então estás quase a chegar, mais 10 diazitos e acabou-se a farra. ;)
Estamos cheios de saudades e estamos a guardar um fim-de-semana para tu nos contares a histórias que não pudeste contar aqui… heheheheh!
Um grande abraço deste teu amigo.
Faz uma excelente viagem de regresso.
Ah, no dia 25 temos uma actuação em… :) estou a brincar!!!
Comentário enviado por Daniel Rebelo em 14.SET.2005 – 18:05
Não estava mesmo nada à espera da notícia do teu regresso antecipado…
Mas acredito que estrejas realmente cansado e que já mereces uns dias (ou semanas, ou meses) no mesmo lugar.
Fico à espera “da minha vez” para ouvir TODAS as histórias que tens para contar,
Zé Carlos
Comentário enviado por Zé Carlos em 14.SET.2005 – 19:52
Bem, o melhor é reservares um auditório e uma máquina de slides para mostrares tudo a muita gente.
Ficamos cá á tua espera… isto é, depois da mulher e da tua familia toda… acho que só temos vaga um mês depois :)
Continuação de um bom final de viagem.
Comentário enviado por Seabra em 14.SET.2005 – 21:51
Fil, estou feliz e triste com seu regresso, feliz por você voltar aos seus familiares e amigos e triste por saber que “os meus” olhos pelo mundo vão parar por uns tempos… sorte amigo. E que sua volta seja repleta de sucesso!
Comentário enviado por Mani em 16.SET.2005 – 04:07
Então estás de volta? Quase já não te vejo parado mum sítio e só te imagino a viajar, hombre!
Fico muito contente com a concretização de um sonho teu, que de certo modo fizeste nosso (de todos).
Seguramente vou sentir a falta das tuas deliciosas crónicas. Pode ser que te veja aqui por Braga.
Grande Abraço e parabéns,
Pedro
Comentário enviado por Pedro em 17.SET.2005 – 19:25
Caro Granda Flash men
Pelo que ouvi dizer chegou ao fim esta viagem… Uma de muitas outras certamente. Aliás, acabada esta, passas já para uma nova, certo? a de volta…
Quero mandar-te um grande abraço e força para o regresso. Tal como os outros que por aqui andaram, espero poder sentar-me a uma mesa contigo para te ouvir, quem sabe com um bom cozido à portuguesa na mesa bem regado por um tinto do Douro?
Até logo companheiro.
Comentário enviado por Pietz em 23.SET.2005 – 15:21
Oi,
Este texto faz-me lembrar uma viagem que realizei com mais alguns amigos há 3 anos atrás ao Brasil. Fomos em busca de uma aventura e encontramos algo que nunca imaginamos! Desde chegar ao Rio de Janeiro na noite de Carnaval e dormir princepescamente na favela da Rocinha (a maior do rio), pois os hotéis estavam todos cheios, até alugar uma carrinha volkswagen muito degradada para fazer uma viagem de 3.000 kms e atravessar todo o estado do Espírito Santo, à procura de locais de voo em parapente. Em certos locais tivemos tratamento VIP e as perfeituras municipais até nos deram alojamento e comida por sermos os primeiros portugueses a passar pela terra e por voarmos como só pássaros que eles tanto apreciavam.
Abraço, Paulo Reis
Comentário enviado por Paulo Reis em 07.FEV.2006 – 14:36
O Espírito Santo hoje é com certeza o estado mais perigoso do Brasil. O principal motivo é o funk, que faz apologia ao crime.
Comentário enviado por Fernando em 03.MAR.2006 – 00:51
Sou louca para conhecer Itaúnas; mas gostaria de saber mais sobre hotéis ou pousadas. Desde já agradeço!
Comentário enviado por Morgiana Martins em 09.JUN.2006 – 18:21