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O Poder da Igreja em Timor-Leste (VM #42)

Por Filipe Morato Gomes

Viagens: Dili, Timor-Leste - Volta ao Mundo

Encontro um ambiente tenso quando regresso a Díli, em virtude de um caricato braço-de-ferro entre a igreja católica e o primeiro-ministro timorense. A igreja, pilar fundamental na luta pela independência de Timor-Leste, tem agora um papel dúbio na sociedade. O povo, esse, continua a seguir cegamente as palavras dos representantes de Deus.

O ambiente em Díli andava tenso. A igreja católica encetara um braço-de-ferro com o primeiro-ministro timorense, Mário Alkatiri, por discordar das suas pretensões. Organizou uma manifestação, por tempo indeterminado, em frente ao palácio do governador. “Até que o primeiro-ministro se demita”, dizia um dos manifestantes. O governo, esse, pretendia tornar facultativo o ensino da religião nas escolas. Algo aparentemente normal num estado de constituição laica. Mas não em Timor-Leste.

Imagens religiosas embelezadas com salendas timorenses
Na manifestação, as imagens religiosas estavam embelezadas com as tradicionais salendas timorenses

O cenário era caricato. Uma fila de cruzes, santos, Cristos e Nossas Senhoras delimitava o início da manifestação. Muitas dessas figuras estavam decoradas com salendas (cachecóis tradicionais timorenses), dando um toque tradicional e patriótico ao conjunto. Havia faixas com inscrições em tétum, clamando por “justiça” e chamando “ditador” ao primeiro-ministro. Atrás das faixas e da fila de imagens, os manifestantes, variando entre poucas centenas e alguns milhares, consoante o dia da semana. Havia muitos jovens e crianças. Ao fundo, tendas, casas de banho móveis e um palco. Vivia-se um ambiente de festa e havia música na tentativa de manter os manifestantes mobilizados. A espaços, tempo para rezar. Eram orações conjuntas, numa espécie de missa ao ar livre. De tempos a tempos apareciam representantes da igreja, oriundos dos vários distritos do país, e subiam ao palco para usarem da palavra. Eram discursos quase sempre inflamados e, cedo ou tarde, surgia a palavra de ordem – sempre a mesma – que os manifestantes entoavam entusiasmados, ao som de acordes: “Fora Alkatiri! Fora Alkatiri!”. A multidão delirava.

À frente das imagens religiosas, um grupo de profissionais da polícia, alinhados, tentava garantir a segurança no local. Tudo decorria tranquilamente e sem incidentes mas, a certa altura, uma freira pegou no microfone e pediu aos manifestantes que entregassem uma flor a cada guarda. E sugeriu que os elementos das forças de segurança depositassem a flor recebida junto às imagens de Nossa Senhora. E então era ver os policiais abandonarem a sua posição de trabalho e, de lágrima no olho e ajoelhados perante as imagens, responderem afirmativamente ao apelo da madre. Em pormenores como este se vê o poder da igreja católica sobre o povo timorense.

Onze longos dias tinham já passado quando o Presidente da República, o antigo comandante Xanana Gusmão, se deslocou ao local da manifestação para tentar demover os manifestantes. Fez um discurso pedagógico, naquele seu jeito paternal. Um timorense ia-me traduzindo as palavras do Presidente, em tétum. “Vocês têm todo o direito de se manifestarem”, dizia. “Agora somos livres de expressar as nossas opiniões e isso é uma das grandes conquistas da independência”, continuou.

Manifestação em Dili, Timor-Leste
Vista geral da manifestação, Díli, Timor-Leste

Falava muito pausadamente, como se estivesse a explicar algo importante a miúdos de tenra idade. O povo aplaudia. “Mas o governo foi eleito para governar, para tomar decisões”, prosseguiu Xanana Gusmão, tentando encaminhar a discurso para aquilo que pretendia evidenciar. A multidão continuava a aplaudir. Falou da constituição de um país laico, do facto de haver opções. À saída do palco, debaixo de uma chuva de aplausos, dir-se-ia que Xanana tinha conseguido passar a mensagem pretendida mas, logo de seguida, um padre pegou no microfone e usou da palavra. “Muito obrigado pelas suas palavras, senhor Presidente. Foi uma honra tê-lo connosco”, afirmou, para logo de seguida garantir: “Mas nós não sairemos daqui”. O povo, de novo, aplaudiu, tal como tinha aplaudido o Presidente. “Fora Alkatiri! Fora Alkatiri!”. E ninguém desmobilizou.

Por essa altura, uma professora portuguesa a leccionar em Timor-Leste deslocava-se num táxi para o centro de Díli. “Concorda com a manifestação?”, inquiriu. “Eu concordo com a igreja católica, professora”, dizia o taxista, “o ensino da religião tem que ser obrigatório, senão isto é uma ditadura.”

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Comentários sobre “O poder da igreja em Timor-Leste”

Este artigo está muito bom, e toca num assunto ainda muito melindroso, mesmo na nossa sociedade. Realmente, o poder da igreja é imenso e manipula os seus fiéis em busca do que pretende. Seja em Timor, seja no Brasil e mesmo em Portugal. Essa medida do governo timorense, a de tornar facultativa o estudo da religião e moral, mostra uma grande maturidade e tenta acabar com a ditadura da igreja católica e com a obrigatoriedade de todas as pessoas, independentemente de serem laicas, hindus, muçulumanas, serem obrigadas a assistir às aulas.
Boa continuação de viagem!!!

Comentário enviado por P.A em 08.MAI.2005 – 12:24

Hombre! Pelo que vi no mapa, encontraste provavelmente no deserto. Vivam os aborígenes ou o que resta deles e da sua cultura. Viva tu e os teus relatos do que ainda vai sendo diversidade cultural.
Já há uns tempos que não te escrevia, o que não quer dizer que não te lia. Deixaste para trás o mítico e místico oriente, and now something completly diferent, todo um continente com oferta variada no que toca a clima e paisagem semi-selvagem, das praias isoladas, ao deserto ou à floresta tropical. Talvez já sentisses falta de uns banhos de urbanidade ocidental (em banhos de cerveja, acho que são pródigos).
Boa estadia pela “ouzzie” land.
Um abraço,
Pedro

P.S.: Em relação ao texto de Timor, digo-te, que por cá, por altura da morte e eleição do papa, parecia que não vivíamos num estado laico, tal era o enjôo de manhã à noite, em todos os media. Tipo, não havia mais notícias. não se passava mais nada.

Comentário enviado por Pedro em 10.MAI.2005 – 15:54

Realmente, o poder da Igreja aqui em Timor é excessivo e chega a roçar o insuportável!
No entanto, a adesão a esta manifestação pseudo-religiosa não foi assim tão grande como fizeram parecer.
Basta pensar que Timor tem um milhão de habitantes e o dia com maior adesão teve 5.000 manifestantes…

Comentário enviado por Hugo em 11.MAI.2005 – 01:11

Depois de tantos anos sob ditaduras alheias ao país, agora querem mesmo ficar na ditadura que mais gostam… a da Igreja Católica. Gosto dessa que dar a liberdade de escolher é uma ditadura… lembra-me um certo referendo, num outro jardim à beira-mar plantado…

Comentário enviado por MagdA em 12.MAI.2005 – 16:41

Filipe Morato Gomes

Autor do blog de viagens Alma de Viajante e fundador da ABVP - Associação de Bloggers de Viagem Portugueses, já deu duas voltas ao mundo - uma das quais em família -, fez centenas de viagens independentes e tem, por tudo isso, muita experiência de viagem acumulada. Gosta de pessoas, vinho tinto e açaí.

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