A Ilha de Flores, no arquipélago indonésio, serviu durante anos aos navegadores portugueses, como ponto de passagem na rota do sândalo proveniente de Timor em direcção a Malaca. O que ficou dessa presença é hoje sentido na língua, nos nomes e no catolicismo predominante. O resto está por descobrir. Viagem à Ilha de Flores, Indonésia.
Chegada à ilha indonésia das Flores
Tinha referenciado Ende, pequena cidade da costa sul da Ilha de Flores, ladeada pelo vulcão Meja, como o primeiro local onde procurar a herança portuguesa na ilha. Para trás ficou a simpática cidade costeira de Labuanbajo, porto de acesso às pequenas ilhas semidesérticas de Rinca e de Komodo, onde se podem ver os pachorrentos dragões mergulhar no magnífico recife de coral.
Chego a Ende por volta do meio-dia. A cidade está parada, o calor e a humidade só deixaram um ou outro vendedor nas ruas. Ainda assim, sou a razão de todos os olhares.
Não há muitos turistas a viajar até às Flores, muito menos até Ende. Depois de algumas perguntas, descubro como apanhar o barco que me levará a Pulao (ilha) Ende. A ilha, ao largo da homónima cidade, é o local onde se encontram as quase desaparecidas ruínas de um forte português, construído no final do século XVI pelo frade dominicano Simão Pacheco.
Reza a história que a fortaleza teve um fim trágico, destruído por um motim resultado de um tumultuoso triângulo amoroso envolvendo uma indígena, um padre e o capitão do forte. Olhando as ruínas do forte, não mais que alguns muros escondidos debaixo da vegetação abundante, tento imaginar estas ocorrências de há trezentos anos. Penso como seriam e o que fariam os portugueses, naquela época, por estas bandas.
Pulao Ende é uma ilha pequena com alguns lugares aprazíveis, uma escassa população muçulmana e rodeada por um mar azul e transparente que convida aos mergulhos. Entrando na água, infelizmente, a desilusão é quase imediata. Debaixo de água existe uma mistura de sucata e ferro-velho.
O fundo do mar é onde muitos dos habitantes da ilha e da costa “reciclam” o seu lixo. Também neste aspecto as coisas mudaram pouco.
Subida ao vulcão Kalimantu
Regresso à cidade e decido seguir para Moni, nas montanhas. Apanhar um autocarro público, neste lugar, torna-se um teste aos limites da paciência. É comum entrar-se no “veículo” e dar voltas à cidade, durante duas ou três horas, até o motorista achar que há passageiros suficientes (geralmente a ultrapassar a lotação máxima), para seguir viagem.
A estrada que nos leva a Moni é estreita e de asfalto intermitente. Serpenteia pela montanha, ladeada ora por escarpas, ora por vegetação. As mangueiras, palmeiras e árvores de sândalo alternam-se na paisagem. A chuva miúda, a primeira que vejo desde que estou na Indonésia, faz com que o autocarro ande mais devagar e a paisagem se torne ainda mais imponente.
A natureza vulcânica da ilha foi esculpindo, de forma abrupta, o seu relevo, deixando vales cavados e profundos e montanhas majestosas. Lembro-me de ter lido que aqui existem dezenas de vulcões, catorze dos quais ainda activos.
Ao fim de quatro horas, chego por fim a Moni. É uma pacata aldeia, rodeada de socalcos, de uns imensos arrozais verdes e por montanhas. O ar é mais seco e as temperaturas mais baixas – uma mudança bem vinda, depois dos últimos dias de pesada humidade.
A aldeia servirá como campo base para a subida ao mítico vulcão Kalimantu. Este vulcão, um dos mais deslumbrantes que alguma vez vi, possui três crateras no seu cume, a mais de 1.600 metros de altitude, cada uma delas com um lago de uma cor diferente. Actualmente, as cores dos lagos são turquesa, castanho e negro. Dizem-me os locais que os espíritos dos mortos vão para esses três lagos: os jovens para o lago turquesa, os idosos para o castanho e os “maus” para o lago negro.
A subida, como convém, faço-a ainda de noite, de forma a chegar ao cume a tempo de ver o nascer do sol. Como na maioria das montanhas, a aurora é o momento onde o céu estará, com maiores probabilidades, descoberto. Neste caso vale, verdadeiramente, a pena. O cenário é majestoso.
O aspecto quase lunar das crateras, misturado com a cor dos lagos e a luz dos primeiros raios de sol, torna este momento inesquecível. Aconselho a subida de jipe e a descida a pé, para se apreciar a imponência do vale com calma.
Sikka, Ilha de Flores
Aproveitados os dias menos húmidos em Moni, retomo o caminho para este em direcção a Sikka. A estrada passa através da acidentada cordilheira montanhosa que separa a parte norte da parte sul da ilha. Durante a viagem, de cinco horas, o cenário continua a ser deslumbrante e a presença de um estrangeiro torna-se, mais uma vez, um acontecimento durante as paragens para descanso.
A opção de se viajar em transportes públicos e não em charters turísticos, se bem que menos confortável, possibilita, entre galos de luta, porcos, e conversas feitas de gestos, olhares ou palavras soltas, uma interacção muito mais profunda com os locais.
Se em Moni, por causa da altitude, a humidade não é tão intensa, à medida que se vai descendo o ar começa a ficar mais denso, o ritmo mais lento e a vegetação, outra vez, tropical. Sikka é uma vila muito pequena, uma antiga capital de província que preserva ainda algo da presença lusa.
Vale a pena ir à missa dominical e ver, na bonita igreja local, uma estátua de Cristo que se supõe ter vindo para aqui em 1641, aquando da queda de Malaca às mãos dos holandeses.
A vila é também conhecida pelos seus trajes e panos típicos em ikat (os casacos são muito apreciados pelos locais e usados em ocasiões especiais), o modo de tecelagem típico das Flores, muito similar aos tais timorenses.
A província de Sikka
Continuo o caminho, em direcção à maior cidade da ilha, Maumere. Actual capital da província de Sikka, a cidade sofreu um terramoto em 1992 que a destruiu parcialmente e arrasou os jardins de coral ao largo da mesma. O coral está a crescer novamente e mesmo sem ser um cenário comparável ao que era anteriormente, vale a pena perder-se debaixo de água por um dia ou dois.
Em Maumere senti a instável condição vulcânica da ilha. Um dos vulcões entrou em erupção e cobriu toda a cidade de cinza branca e ácida, fechando a população em casa, condicionando os transportes e a vida, em geral.
Este fenómeno, com a sua beleza envenenada, apressou a minha partida para Larantuka, pequena cidade junto ao cabo que deu o nome à ilha. Esta viagem faz-se de novo pelo meio da cordilheira montanhosa, desta vez de norte para sudeste. Aqui, como no resto das montanhas desta ilha indonésia, o cenário é deslumbrante.
Ao fim de quatro horas surge a linha de costa, com Larantuka ao fundo e as ilhas de Solor e Adornara em frente. A proximidade destas ilhas à costa faz com que o mar se assemelhe a um lago rodeado de montanhas. A paisagem aqui é absolutamente incrível. Vale a pena fazer, a última hora de viagem, de dia ou, ainda melhor, ao entardecer, para desfrutar convenientemente do cenário.
Larantuka fica literalmente encostada ao vulcão Miringini, de frente para as ilhas de Adornara e Solor. É uma vila pequena onde a influência católica é visível, principalmente, nos costumes. As missas, nas “gerejas” (igrejas) da “Tuan (Senhora) Ma (Maria)” e “Tuan (Senhora) Ana” e as visitas, a uma pequena Via-sacra, são disso exemplo. Mas nenhuma tradição é mais marcante, dizem-me, que a da Semana Santa, na Páscoa.
As celebrações duram três dias e culminam com duas procissões: a primeira, de manhã, com dezenas de barcos, entre Larantuka e a ilha de Adornara e a segunda, coordenada pela Confraria Reinha Rosário, que acaba com uma missa de duas horas na Catedral Reinha Rosário.
As ilhas de Afornara e Solor
Em frente a Larantuka, encontram-se as ilhas de Adornara e Solor. Em Adornara, na povoação de Vure, encontram-se mais marcas de portugueses: imagens em capelas, canhões e um sino. Tal como em Larantuka, muitas destas coisas são difíceis de serem vistas. O isolamento e as diferenças religiosas fizeram destas peças objectos sagrados, protegidos por confrarias ou pela população em geral. Nestes casos, como noutros, ajuda ser português.
Em Solor, na povoação agora conhecida como Lahayong, encontram-se as ruínas de um forte português do século XVII. Esta fortaleza foi construída pelos descobridores lusos como entreposto militar, servindo de apoio e defesa aos seus barcos que faziam o transporte de madeira de sândalo de Timor para Malaca.
O forte encontra-se num razoável estado de conservação, se atendermos às circunstâncias. O ataque dos holandeses, o tempo, o abandono e uma onda gigante, em 1967, destruíram parte dos seus muros. Ainda assim, é possível distinguir as torres e os diferentes níveis da fortificação.
O isolamento desta povoação torna a experiência ainda mais interessante. Os forasteiros, indonésios incluídos, não são muito comuns por aqui e para se circular, torna-se obrigatório um pedido de autorização ao chefe da vila. A curiosidade dos locais é enorme e a desconfiança inicial rapidamente se transforma em entusiasmo. Os portugueses são, normalmente, bem-vindos.
Possivelmente por serem dos poucos que se interessam pelos habitantes locais e também pelo esforço que a embaixada de Portugal faz para incluir os habitantes no trabalho de preservação das ruínas.
Volto a Larantuka, para apanhar o ferry para Timor Oeste. Antes de partir, um grupo de locais despede-se de mim e oferece-me um livro “para entregar como presente ao embaixador português em Jacarta”. A bondade e a inocência desta gente são assombrosas. Prometo entregar o livro, despeço-me e entro no ferry. Adeus, terima kasih e obrigado.
Sobre a Ilha de Flores, na Indonésia
O nome vem do original Cabo das Flores, nome dado pelos portugueses ao cabo mais oriental da ilha. Os seus primeiros registos datam de 1512, escritos por António de Abreu que a avistou, quando viajava até Timor.
Os portugueses acabariam por se instalar na ilha de Solor, ao largo do cabo, construindo aí a sua primeira fortaleza do arquipélago. O catolicismo dominante na ilha deve-se, em grande parte, a evangelização portuguesa, feita por freis dominicanos enviados por Don Frei Jorge de Santa Luzia, Bispo de Malaca.
A maioria da população continua a ser católica, com as excepções de algumas ilhas, como Adornara, Ende ou Solor. Como em muitos locais isolados, o animismo é praticado conjuntamente com o catolicismo.
A topologia da ilha é dominada por uma cordilheira de vulcões, na zona central, que dificulta bastante as comunicações. Situada numa das zonas geológicas mais instáveis do planeta, a paisagem da Ilha de Flores reflecte isso mesmo, com vales cavadíssimos, escarpas marcadas, extensões de selva impenetráveis e numerosos vulcões – catorze dos quais ainda activos.
As Flores não são um destino muito comum, apesar de não ser difícil lá chegar. O impacto da paisagem selvagem e a experiência de cruzamento de culturas (onde encontramos pedaços da nossa), faz a viagem valer imensamente a pena.
O português na Indonésia
Apesar da marca arquitectónica colonial portuguesa, estar perdida ou diluída, pela influência holandesa e indonésia, a língua ainda sobrevive, de algumas formas.
Se no Bahasa indonésio, se podem contabilizar 200 palavras portuguesas, nas Flores esse número ascende a 2.000. Mais do que uma vez pareceu-me entender o sentido de algumas frases ou pedidos. Palavras como “grande”, “semana”, “franga”, “domingo”, “fogo”, “sentido”, “tia” ou “sábado” são exactamente iguais. Derivações como “gereja” (igreja) ou doutro tipo, como “gula” (açúcar), são comuns. Surpreendentes são também os nomes. Muitas pessoas têm nomes portugueses: o governador da ilha chama-se “Felix Fernandez” e nomes como “Miguel”, “Sebastião”, “Alberto” ou “Pedro”, assim como os apelidos “da Cunha”, “da Costa” ou “Pereira” são encontrados frequentemente.
Guia de viagens à Ilha de Flores
Este é um guia prático para viagens às Flores, na Indonésia, com informações sobre a melhor época para visitar, como chegar, pontos turísticos, os melhores hotéis e sugestões de actividades na ilha.
Quando ir
De Abril a Outubro, aproveitando-se a época seca, que na Ilha de Flores é mais tarde do que em Bali ou em Java.
Como chegar às Flores
A partir de Bali, de avião com a companhia Merpati, para Labuanbajo, Ende ou Maumere. De barco, aproveitando os veleiros turísticos que partem desde Bali ou Lombok e percorrem Sumbawa, Rinca e Komodo até chegarem às Flores. De ferry: “Pelni”, barcos de passageiros que ligam todo o arquipélago indonésio.
Onde ficar
Não existem grandes hotéis nas Flores, apenas alguns hostels agradáveis. Em Labuan Bajo: Gardena Hotel; em Moni: Arwanti Homestay; em Maumere: Hotel Permata Sari; em Larantuka: Hotel Fortuna II.
Pesquisar hotéis em Labuan Bajo
Informações úteis
Todos os cidadãos portugueses necessitam vistos para entrar na Indonésia. O visto é válido por 30 dias e pode ser obtido na Embaixada da Indonésia em Lisboa, sita na Rua Miguel Lupi 12 – 1º. É aconselhável fazer a profilaxia da malária.
Seguro de viagem
A IATI Seguros tem um excelente seguro de viagem, que cobre COVID-19, não tem limite de idade e permite seguros multiviagem (incluindo viagens de longa duração) para qualquer destino do mundo. Para mim, são atualmente os melhores e mais completos seguros de viagem do mercado. Eu recomendo o IATI Estrela, que é o seguro que costumo fazer nas minhas viagens.
Informações preciosas.
Gostei muito.
Obrigada
Quais são as alternativas de transporte a partir de Labuanbajo para o resto da ilha?
Boa tarde, Nuno!
Referiste a necessidade de visto mas, pelas leituras que fiz hoje, não é necessário visto para visitar a Indonésia, desde que por menos de 30 dias. Confirmas?
Desde já agradeço o teu apoio.
Cumprimentos,
Rui Oliveira
Olá Rui, esta reportagem é bastante antiga. A informação oficial, no dia de hoje, diz o seguinte: “Desde finais de Setembro de 2015, os cidadãos passaram a beneficiar de isenção de visto de entrada na Indonésia (“visa on arrival”) – que anteriormente era solicitado e pago à entrada no país – desde que: entrada ocorra por um dos cinco aeroportos principais da Indonésia ou nove portos de mar.”
Abraço e boa viagem.
Olá Filipe! Parabéns, este post é muito interessante e informativo no que diz respeito à “nossa” passagem pelas Flores e continua bastante actual!
Só para facilitar um pouco a resposta ao Rui: não precisa de visto caso permaneça menos de 30 dias na Indonésia. No entanto, caso queira prolongar a sua estadia, tem que pagar visa on arrival uma vez que só este poderá ser estendido. Caso contrário, terá que sair e voltar a entrar no país.
Boas viagens!
Olá Filipe. Vou à Indonésia em outubro e também pensamos em visitar a ilha de Komodo. Existem trips de 3 dias de barco que passam por várias ilhas do arquipélago de flores. No entanto estou um pouco receosa, quanto às condições dessa viagem (condições do barco etc) e nomeadamente o risco de contrair malária. Tem alguma opinião / conselho acerca disso? Obrigada
Joana
Há operadores que foram muito afetados pelos últimos sismos em Lombok (há pouco tempo, alguns não estavam a operar). Havendo barcos, o mais que posso dizer é que eu faria a viagem – talvez haja barcos que não sejam os mais seguros do mundo, mas cada um sabe os riscos que está disposto a correr. É uma questão de escolher um operador de maior confiança. Abraço e boas viagens.