Uma história de Angola em impressões passageiras
Vários livros sobre Angola têm sido publicados nos últimos anos: de história, política, guerra, retorno, mas também de viagem. Parece haver um renovado fascínio pela Angola do pós-guerra, interesse suscitado pela prolongada devastação que o conflito deixou, espécie de existência em suspenso que mais de 28 anos de guerra civil (somados a 14 de guerra colonial) deixaram como cicatrizes no povo, nas cidades, na moral de um país tentando, lentamente, reconstruir-se dos escombros.
Dália Azul, Ouro Negro não é exceção, ainda que parte da viagem do britânico Daniel Metalcafe tenha mais a ver com o autor do que com Angola. Isto é: seguimos um olhar e não, necessariamente, um retrato do país. Apesar das extensas e completas referências históricas (das lendas da rainha Ginga à presença de cubanos e soviéticos no pós-independência), Angola é aqui um país representado pela incredulidade e pelo deslumbramento de Metacalfe, intercalado pelo seu próprio (crescente) cinismo, sobretudo quantas mais semanas passa no território – por exemplo, num controlo policial na Lunda Sul, o polícia não parece convencido com o visto de Metcalfe, franze o sobrolho, faz perguntas, exerce autoridade, saca da burocracia. “Tentei explicar‑lhe a situação, mas ele mostrou‑se relutante. Limitava‑se a abanar a cabeça. Já era mau para um estrangeiro não viajar em grupo, mas ainda pior era ser um turista‑trabalhador! Que viria a seguir? Aquilo era um problema, um problema para ele e um problema para o seu chefe.”
Há vários exemplos que demonstram que talvez seja impossível permanecer inocente no país dos petrodólares. Como se “a confusão”, parte do ADN de Angola de que fala Metcalfe, fosse contagiosa até para quem pretendia conhecer um país que “simbolizava um ponto de viragem mais profundo entre os continentes, o reposicionamento do mundo dos ricos em relação a África”, “à procura da ideia de normalidade num país que sofrera um trauma terrível”.
É talvez de uma inocência que estamos à espera. A mesma inocência que lemos nas páginas sobre São Tomé e Príncipe, a primeira paragem de Metcalfe, a caminho de Angola (primeiros capítulos). À primeira vista, parece tudo farinha do mesmo saco – São Tomé e Angola, países de língua portuguesa, um só livro, dois coelhos. Mas São Tomé tem mais que ver com Angola do que Angola talvez saiba reconhecer, sobretudo porque durante o império português foi um importante interposto de tráfico negreiro.
Metcalfe recorre a São Tomé para se familiarizar com a África lusófona. Talvez essa decisão seja um erro quase cândido em Dália Azul, porque a sociedade são-tomense não é, de todo, idêntica à angolana. Isto, para Metcalfe, talvez esteja ainda por descobrir: os países da África lusófona têm uma identidade tão em comum, como o Quénia da Nigéria, e talvez seja esse reconhecimento – não da excecionalidade do colonialismo português, pelo contrário, de algumas das suas especificidades e contextos – que tornam uma viagem como a sua, simultaneamente, fascinante e talvez fracassada.
A dália é a flor típica do planalto no Huambo. O ouro é, claro, o petróleo, cuja abundância determina as conversas sobre dinheiro (ou a sua escassez), corrupção, tráfico de influências e investimentos governamentais. E ainda que a dália e a sua natureza possam ser revelações para o leitor, tanto o petróleo como a vasta informação histórica que Metcalfe reproduz transformam grande parte deste livro menos num relato de viagens do que num interessante olhar sobre um país que já perdeu a sua inocência.
Ainda que as impressões de Metcalfe sobre Luanda, Benguela, e cidades afetadas pela guerra, como Huambo, sejam requentadas – a sujidade, a pobreza, a escassez, os preços exorbitantes, poderosos protegidos por mansões luxuosas e o povo malnutrido, chineses a construir autoestradas e ONG a denunciar o sistema. O que é realmente fascinante neste livro são, por isso, os lugares do “fim-do-mundo”, literalmente, terras esquecidas pelo próprio governo central de uma Angola perdida na sua própria encruzilhada: Cuito Cuanavale, Menongue, as Lundas, Mbanza-Congo, Cabinda, espaços nomeados nos imaginários de alguns leitores mas com os quais o viajante comum há muito não contacta – não só pela sua presumível inacessibilidade (que Metcalfe claramente desmistifica), mas também porque a própria literatura de e sobre Angola dos últimos 40 anos não tem saído de Luanda, deslumbramento que se tem tornado asfixiante num país demasiado obcecado com “o novo” e que tem vindo, como Metcalfe mostra, a perder a noção da sua própria história.
- Título: Dália Azul, Ouro Negro – Viagem a Angola
- Autor: Daniel Metcalfe
- Editor: Tinta da China
- Tradução: Susana Sousa e Silva
- Ano: 2015
- Páginas: 448
Adoro literatura de viagem! Espero que continuem a publicar textos deste género!
Olá,
Desde felicito pelo excelente blog. Duas das minhas paixões são ler e viajar. Que existe melhor do que isso no mundo? Apenas algumas coisas :p
Deixo uma recomendação de um livro inspirado numa viagem verídica em que o autor, Tiziano Terzani , percorreu o extremo oriente por terra visitando países como a Birmânia, Tailândia e Laos. É da mesma colecção do livro que recomendou e chama-se “Disse-me um adivinho”. É um livro fora de série e que me fez aprender muito sobre a Ásia antiga.
Kiki