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Em Malaca, Por Mares Muito Antes Navegados (VM #35)

Por Filipe Morato Gomes

Forte português em Malaca

Chego a Kuala Lumpur, capital da Malásia, e surpreendo-me com a visão nocturna das torres Petronas. E sigo depois para Malaca onde, pese embora os abundantes vestígios da presença lusitana, encontro a língua de Camões totalmente moribunda.

As chuvadas tropicais em Cameron não deixavam espaço para grandes passeatas e enxotaram muitos dos forasteiros que lá se tinham deslocado para apreciar as plantações de chá ou efectuar caminhadas pelos trilhos bem marcados nas selvas da região. Era hora de partir ao encontro de Kuala Lumpur, coração financeiro de uma Malásia super eficiente e desenvolvida.

Edifício Sultan Abdul Samad, em Kuala Lumpur, Malásia
Edifício Sultan Abdul Samad, em Kuala Lumpur, Malásia

Tal como havia feito em Moscovo e Pequim, organizei encontros com habitantes locais na tentativa de obter uma perspectiva mais íntima de uma tão grande cidade. Amata, malaio de ascendência chinesa, apareceu na recepção da guesthouse onde fiquei hospedado eram praticamente horas de jantar. Outrora viajante inveterado, Amata sofreu um grave acidente durante a sua última jornada algures na vastidão das estepes mongóis, quando o cavalo onde galopava o atirou violentamente de encontro à dureza implacável do solo pedregoso. “Parti a clavícula e demorou três dias até receber assistência médica apropriada”, contou, enquanto saboreava uma malga de noodles numa tasca de rua em Chinatown.

Não totalmente refeito do acidente e incapacitado de voltar a viajar de forma independente, era notório o prazer que Amata sentia por partilhar alguns momentos com outros viajantes, ora conversando no hall de entrada da guesthouse, ora abrindo as portas de sua casa a forasteiros, ora ainda mostrando-lhes partes da sua cidade. “Já visitaste as torres Petronas”?, inquiriu. Não tinha nenhum particular interesse em ver aquele que foi até há pouco tempo o mais alto edifício do mundo, mas Amata insistiu. “Tens que ver as torres de noite”. Quinze minutos depois, encontrávamo-nos a bordo do eficaz sistema de metro local a caminho do mais incontornável marco turístico de Kuala Lumpur. E a visão daqueles monumentais edifícios completamente iluminados era, de facto, assombrosa. Estupefacto e de pescoço contorcido, admirei longamente as gémeas construções perante o sorriso cúmplice de Amata. Estupendo.

Para além da dominante modernidade patente nas Petronas e em grandes espaços comerciais e de negócios, Kuala Lumpur possui algumas pérolas espalhadas por outras artérias da cidade. Como a colorida Little India, quarteirão onde os cheiros, as pessoas e o próprio ambiente de feira permanente oferecem uma diferente visão da capital malaia. Ou a caótica Chinatown, onde de tudo um pouco se vende com a certeza de nenhum produto ser genuíno. Ou ainda edifícios históricos de arquitectura original, como o magnífico Sultan Abdul Samad, situado em pleno coração de Kuala Lumpur. Foi a história, aliás, que me atraiu à costa oeste da Malásia e, ansioso por redescobrir vestígios da gloriosa época em que os navegadores portugueses descobriram meio mundo, em breve viajava com destino a Malaca.

Rua de Medan portuguis, Malaca
Rua de “Medan portuguis”, a comunidade portuguesa em Malaca

Letreiros anunciando “Comida portuguesa” davam as boas-vindas nos primeiros passos pela cidade. Sendo português, ao pisar o solo de Malaca era invadido por uma estranha sensação que não havia experimentado em nenhum outro lugar. Um misto de excitação e nervosismo, inexplicável. Era como se regressasse a um lugar familiar sem nunca, no entanto, lá ter estado. E os indícios da presença lusa – e também holandesa – eram bem evidentes por toda a parte. Como na chamada Porta de Santiago, o que resta da fortaleza “A Famosa” construída pelos portugueses séculos atrás e posteriormente destruída por mãos holandesas. Ou na estátua de S. Francisco Xavier, erguida em frente às ruínas da igreja de S. Paulo, também ela originalmente construída por ordem lusitana. Malaca estava cheia de lugares e pormenores a lembrar o passado colonial mas, para finalizar a descoberta, faltava ainda ir ao encontro dos descendentes dos conquistadores de outrora.

Sentado num autocarro público, esperei pelo sinal do cobrador para sair na paragem certa. Procurava o que resta da comunidade portuguesa, concentrada numa área situada a três quilómetros de Malaca. Percorri as simpáticas artérias da comunidade, embelezadas com flores e mais flores, na busca de quem ainda tivesse alguma fluência no português. Em vão. Muitas gerações depois, a língua está como que moribunda. Apenas alguns dos mais idosos recordavam ainda algumas palavras, mas a articulação de uma frase completa era já uma tarefa demasiado exigente.

Bati à porta de Domingos Costa, homem com uns respeitáveis 72 anos de idade e líder da comunidade portuguesa local. Tinham-mo indicado como a pessoa certa para uma conversa em português. “Sr. Costa, boa tarde”, arrisquei. “Boa tarde”, respondeu, surpreso, num português quase imperceptível. “É português?! Olhe, eu sempre vivi aqui, todos nesta comunidade descendem de portugueses”, afirmou. Fazia um esforço sobre-humano para entender o que Domingos dizia. “Mas nunca fui a Portugal, nem tenho lá família”, pareceu-me que foi o que disse. Dez minutos depois, desistimos do português. No final, um “goodbye” havia já substituído o tradicional “adeus”. Quatrocentos anos e meio globo de distância são um fosso demasiado grande para a língua de Camões.

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Filipe Morato Gomes

Autor do blog de viagens Alma de Viajante e fundador da ABVP - Associação de Bloggers de Viagem Portugueses, já deu duas voltas ao mundo - uma das quais em família -, fez centenas de viagens independentes e tem, por tudo isso, muita experiência de viagem acumulada. Gosta de pessoas, vinho tinto e açaí.

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