Destino: Ásia » Mongólia

Percalços na Verdejante Mongólia Central (VM #07)

Por Filipe Morato Gomes

Tsertserleg, Mongólia

Depois de uma semana a viajar pelo Deserto de Gobi, chegar às estepes da Mongólia Central proporcionou uma agradável mudança de cenário. Surgiu a água, o verde, mais vida. Mas nem tudo foi perfeito. Os azares acontecem, ao melhor estilo mongol.

Os dias passados no deserto de Gobi foram uma admirável experiência. Mas sabe bem ouvir de novo a água correr rio abaixo. E perder o olhar no verde viçoso que pinta encostas e vales na zona central da Mongólia. Passear nas margens de um lago imenso e tranquilizador ou observar o horizonte agora marcado pelas curvas insinuantes de montanhas em salto alto. Não há dúvida. A paisagem mudou desde que voltámos a ter o norte como alvo. Pedras por árvores e arbustos, camelos por cavalos e iaques, planícies por planaltos e montanhas, lentamente o quadro que nos envolve foi-se tornando menos rude, mais frondoso. Talvez mais bonito. Diferente.

Traje tradicional de uso quotidiano nas estepes da Mongólia central
Traje tradicional de uso quotidiano nas estepes da Mongólia central

Chegamos a Orkhon reconfortados com a ideia de um dia de descanso neste ambiente bucólico. Será o primeiro dia sem condução desde que partimos para esta expedição todo-o-terreno, pausa muito bem-vinda depois de milhar e meio de quilómetros de abanões e solavancos por caminhos inenarráveis. E Orkhon é um lugar magnífico para relaxar. Não há nada à nossa volta, nenhuma povoação, nada. Apenas pequenos conjuntos de gers plantados nas proximidades do rio que corre calmo e lento. Centenas de cavalos vagueando elegantemente em busca de pasto. E verde, muito verde em todas as direcções. Outros viajantes tinham-nos falado da excelência deste lugar, de quanta pena tinham tido por não poder ficar mais tempo, queixavam-se enfim de ter passado por aqui demasiado rápido. Compreendo os motivos. O vale é belíssimo, sem dúvida, e vindos do deserto esse encanto é como que uma miragem tornada realidade.

Mas nem tudo foi perfeito nesta passagem pela Mongólia central. Algo muito estranho sucedeu, aliás. Pela primeira vez nesta viagem, crianças lançaram pedras contra a nossa carrinha como se de um jogo se tratasse. Tiro ao alvo. Em movimento. Já tinha escutado histórias de ciclistas apedrejados por miúdos nas estradas do Tibete, mas nunca nenhuma referência a este tipo de comportamento relativamente à Mongólia. Atitude estranha esta, ainda mais num país de gente tão afável e hospitaleira. Um caso isolado, provavelmente.

E a carrinha, preparada e acostumada a estes terrenos difíceis, pela primeira vez cedeu. Foi à passagem pela antiga capital Kharkhorin que se recusou a colaborar. Parou. Avariou. “Machine no good” – palavras do nosso simpático condutor Nêma, proferidas em simultâneo com o típico gesto mongol de mostrar o punho cerrado elevando somente o dedo mindinho. Simboliza algo de mau, desacordo, reprovação, muito a propósito quando acabamos por ficar retidos durante mais de seis horas numa estrada de terra batida às portas de Kharkhorin.

Vale de Orkhon, Mongólia
Vale de Orkhon, Mongólia

Afortunadamente, sucedeu perto de uma povoação. Deambulámos pelo mercado local, atrevemo-nos a entrar num minúsculo restaurante despido de gente e comer o que calhar – carneiro com algo mais, pela enésima vez -, matámos o tempo enquanto Nêma solucionava o problema mecânico. E decidimos visitar o famoso Mosteiro de Erdene Zuu situado nos arredores da cidade e uma das grandes atracções do país, segundo consta. Uma enorme desilusão. Fama desmerecida.

Nêma lá conseguiu solucionar o problema. Com criatividade e imaginação. E a ajuda de outros condutores que passam e param e oferecem auxílio. Sinto como verdadeiro que onde menos há mais as pessoas são solidárias, cooperantes e engenhosas, inventivas, a arte da sobrevivência tornada parte integrante do quotidiano. Olho para o corpo da sorridente Sophie, companheira de viagem onde habitam para a eternidade uns caracteres tatuados em árabe no fundo das costas: “A imaginação é a luz da alma”. E do desenrascanço. A carrinha arranca novamente.

Livro Alma de ViajanteEsta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.

SUBSCREVER NEWSLETTER

Filipe Morato Gomes

Autor do blog de viagens Alma de Viajante e fundador da ABVP - Associação de Bloggers de Viagem Portugueses, já deu duas voltas ao mundo - uma das quais em família -, fez centenas de viagens independentes e tem, por tudo isso, muita experiência de viagem acumulada. Gosta de pessoas, vinho tinto e açaí.