Chegado a Ouro Preto, no estado de Minas Gerais, Brasil, “Manuel Joaquim Pereira”, aliás, eu próprio, dispenso os luxos de uma pousada e fico alojado numa república de estudantes. Por uma semana, recuo aos tempos académicos por entre sebentas e festas universitárias. E conheço “Papá”, um dos antigos moradores da república que, tal como a maioria, volta regularmente ao casarão para rever amigos e matar saudades.
Faz muito tempo que “Papá” estudou em Ouro Preto. Durante esse período, viveu na república Sinagoga. Aproveitou ao máximo o espírito ímpar de uma acolhedora cidade estudantil como Ouro Preto. Entre festas, noitadas e algum estudo – imagino. Fez amizades verdadeiras – daquelas para toda a vida -, conheceu o calor das mineiras, apaixonou-se pela sua actual esposa. Olho para o seu sorriso disfarçado e imagino que terá saudades. Olho para o seu olho brilhante e imagino que aqueles terão sido alguns dos melhores anos da sua vida. Talvez por isso, como uma ave que regressa ano após ano ao mesmo ninho, “Papá” regressa à sua república. Foi lá que o fui encontrar.
Estava num autocarro que fazia a ligação entre Belo Horizonte e Ouro Preto quando, ao meu lado, se sentou um rapaz novo e simpático. Feitas as apresentações, perguntou-me em que pousada iria ficar hospedado. “Não sei, nunca faço reservas. Quando chegar lá, procuro” – respondi. “Eu moro numa república, às vezes recebemos turistas” – prosseguiu, para mais tarde sugerir: “é tudo muito básico, mas se quiseres ficar lá…”
Entre um quarto de pousada bem decorado e arrumado mas solitário, e uma cama num quartinho de uma casa repleta de estudantes, com muita alegria e festas quanto baste, a escolha pareceu-me óbvia. “Adoraria ficar convosco” – disse, sorrindo, com a certeza de que por mais simples que fosse a república, ir-me-ia sentir bem.
Muitas repúblicas de estudantes em Ouro Preto estão acostumadas a receber viajantes independentes. Cobram, para isso, preços módicos para quem anda na estrada com orçamento reduzido. E usam o dinheiro para melhorar a própria república. “Já comprámos uma geladeira e um novo fogão com o dinheiro dos turistas que ficaram aqui nos últimos tempos” – dir-me-ia, dias mais tarde, “Bolão”, apelido do líder na hierarquia da república.
“Trouxe um portuga para ficar connosco” – disse “Tô Fora”, quando cruzámos a porta de entrada da Sinagoga. Uma instantânea sensação de regresso aos tempos académicos invadiu a minha alma. Era um casarão antigo, de chão de madeira, com vários quartos, uma cozinha desarrumada como em qualquer casa de estudantes, uma ampla sala comum com colchões pelo chão e algumas outras particularidades interessantes. Como o grelhador montado num grande pátio propício a festas ao ar livre. E a maior surpresa de todas, anunciada com um “portuga, anda ver a nossa boîte”. Era uma sala escura mas aconchegante, com espaço para dançar e recantos para sentar, decorada com sinais de trânsito, instrumentos musicais velhos e pinturas na parede, e onde não faltavam um engenhoso sistema de luz – incluindo uma bola giratória espelhada e um semáforo gigante – e um potente sistema de som. “Tens que ver isto cheio de morenas” – gracejaram, com ar malandro.
Não tive a sorte de ver as “morenas” dançar mas, mesmo assim, apaixonei-me. Pelas ladeiras empedradas de Ouro Preto. Pela arquitectura sóbria do centro histórico da cidade, que a UNESCO entendeu classificar como Património Mundial. Pelos telhados. Pelas cores pastéis das fachadas dos casarios. Pelos sons de batuques e berimbaus que comandavam rodas de capoeira em plena praça central. E pela inacreditável obra do Aleijadinho, escultor ali nascido e que deixou um legado de arte espalhado por várias cidades de Minas Gerais, incluindo Ouro Preto. A maioria das suas obras foi esculpida com o martelo e o cinzel sustentados pelos tocos dos seus membros superiores, após, com apenas trinta anos de idade, ter perdido ambas as mãos e pés. Impressionante.
Enquanto me deliciava com passeatas por Ouro Preto, quase todos os moradores da república estavam em época de exames finais. Mas qualquer pretexto era bom para adiar o inevitável estudo. “Amanhã vêm aí alguns antigos moradores da Sinagoga para confraternizar e matar saudades” – informaram-me.
É curioso como, muito após a formatura, os antigos alunos continuam a regressar a Ouro Preto. Não pela universidade, mas pelas marcas gravadas na memória pela república onde cada um morou. Um banho de alegres saudades, como naquele momento em que “Papá” contemplava os retratos de todos os antigos moradores da Sinagoga, pendurados nas paredes da casa.
Certa manhã, saí de Ouro Preto para visitar a vizinha Mariana, uma das várias cidades históricas de Minas Gerais. Como Tiradentes, Diamantina, São João del Rei e Ouro Preto. Ruelas empedradas com casarios coloniais bem preservados davam um toque de charme à povoação. E havia algo inusitado em Mariana. Caminhava-se até à Praça Minas Gerais e o olhar deparava-se com duas igrejas imponentes, de fachadas brancas e limpas, compartilhando o pequeno espaço da praceta. Uma visão rara e muito atractiva.
Era então tempo de mudar de poiso e rumar ao Espírito Santo. “Até mais, Pereira” – assim se despediram os moradores na Sinagoga. “Pereira”, aliás, “Manuel Joaquim Pereira Ora Pois”, foi a alcunha que ganhei desde o primeiro instante na república. Como se todos os portugueses fossem manueis ou joaquims e o “ora pois” fosse a expressão nacional por excelência. “Pereira, hás-de voltar” – sentenciaram. Talvez. Fui morador da Sinagoga durante apenas uma semana mas, à saída, levava comigo uma pequena amostra do espírito da vida solidária de uma república. Sendo assim, tal como “Papá” que regressa ano após ano à Sinagoga, pode ser que o “Pereira” volte um destes dias.
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.
Comentários sobre “Em Ouro Preto, na casa do ‘Papá’”
Tenho 21 anos e sou de BRAGA!
Sigo atentamente este site sempre à espera de novas notícias suas! Gostava de ter a coragem de partir assim um dia para uma aventura como a sua. Boa Sorte!
Comentário enviado por Patrícia Ferreira em 03.SET.2005 – 14:24
Olá… já te escrevi uma vez e na época ainda estavas na Ásia. Não tenho a sorte e o inenarrável prazer de fazer essa viagem inesquecível, mas posso dizer que em 26 anos de vida conheci alguns lugares do mundo… Macau, Hong Kong, China, Filipinas, Portugal (minha terra natal) e alguns países da Europa Ocidental, EUA, e meu país de coração que é o Brasil… vivo aqui desde meu primeiro ano de vida e me considero brasileira, apesar de amar Portugal e os portugueses…
Daqui, conheço a região sul, sudeste (vivo no Rio) e a região nordeste… Este país é simplesmente SENSACIONAL… indescritível… um mundo de diferenças culturais e regionais. Espero que você ame o Brasil como eu e aprenda muito com ele… um abraço e boa viagem.
Comentário enviado por Isabel em 06.SET.2005 – 02:54
Olá “Pereira”!
Quer devido ao texto, quer por causa das fotos foi inevitável recordar Tiradentes!
Uma visita quase-relâmpago, combinada ao fim do dia de chegada a Barbacena… e feita na manhã seguinte.
Dias intensos essas 3 semanas de 2001…
Continuação de boa jornada…
Comentário enviado por Jorge Portugal em 06.SET.2005 – 10:36
Uma semana inteira na república?!?
Devias estar mesmo à espera de uma festa na boite :)
Continuação de uma boa jornada, quando chegares já deves ter sotaque brasileiro :P
Comentário enviado por Seabra em 07.SET.2005 – 13:46
Pois é, Seabra, por azar, na noite em que houve festa da grossa na república, eu tinha saído para assistir a um concerto de um Festival que estava a decorrer na cidade. Podem imaginar o gozo que levei: “e aí, Portuga, a casa cheia de morenas e tu nem apareces?!… eram 3 ou 4 para cada um…”
A vida de estudante é difícil em Ouro Preto… :)
Comentário enviado por Filipe Morato Gomes em 10.SET.2005 – 22:28
Bom Sr. “Manuel Joaquim Pereira Ora Pois”, (risos).
Sou ex-aluno da querida Sinagoga. Estou no Espírito Santo e hoje estou indo pra lá comemorar mais um doze de Outubro.
Ao ler esta crónica sobre a república fiquei muito feliz e novamente me vi lá… Eta saudade doida!!!
Abraço e se considere um felizardo de ter conhecido um dos melhores lugares de Minas Gerais (e do mundo… a Sinagoga)
Comentário enviado por Splinter em 07.OUT.2005 – 12:56