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Doce-segredo, no Paço, a ver Terras do Demo

Por Ana Isabel Mineiro

Da varanda do Paço da Torre vê-se o vale do Vouga, o maciço serrano da Gralheira, e o pôr-do-sol, num longínquo horizonte, como se o olhar planasse ansioso a 180 graus. A norte, São Pedro do Sul, terra termal; aldeias preservadas, xisto, granito, urze, carvalhos. A sul, Vouzela inconformada com a extinta linha férrea; a guardar segredos de pastéis afamados. Tudo isto, a menos de uma hora desse terraço a ver-o-rio, na Beira Alta. Fim de semana na casa de turismo rural onde nasceu Figueiredo das Donas.

Paço da Torre

Há três anos, o musgo ainda dormia nas pedras de granito do Paço da Torre, desgastadas pelo vento pertinaz, e a miúda chuva dava de beber a ervas daninhas sulcadas em ruínas pedregosas que o calendário já perdeu. Há três anos, essas mesmas ruínas atraíam romarias de curiosos para ver o marco onde nasceu Figueiredo das Donas, no concelho de Vouzela. E se, no século VIII, contam as velhas páginas da memória local, numa lenda na boca das gerações, o cavaleiro vizinho de Lafões Guesto Ansur não tivesse enfrentado os mouros em defesa de seis donzelas, primeiro com a espada afiada, depois com uma pernada de figueira, o Paço da Torre, provavelmente, não existiria, para ser hoje um pacato refúgio familiar com uma piscina a olhar o infinito, e um rebelde pôr-do-sol. E sobre este segredo, esperamos pelo final desta prosa!

Antes da piscina rodeada de verde bem-estar, Ansur, enquanto Carlos Magno ensaiava estratégias bélicas e se fazia homem pré-império romano, fez assento senhorial. Enamorou-se de uma dona. E ergueria, conta a história lendária, o que viria a ser o Paço da Torre. Só há registo efetivo do espaço no século XV, mas agora está reconstruído e adaptado pela família Cardoso Lima, que se fez anfitriã e dona do mais recente segredo da região: a casa de turismo rural com o mesmo nome, no alto de Figueiredo das Donas. A data de batismo, quando se abrem, finalmente, as portas aos hóspedes, grava-se no primeiro fim de semana de abril, embora, num feliz imprevisto, o Paço da Torre tenha aceitado reserva de um casal de Portalegre, no último fim de semana de março, que queria descansar na serenidade da casa. Os Cardoso Lima ainda hesitaram. Não contavam que o boca-a-boca da internet fosse tão célere, no marketing do turismo rural. Anuíram.

O paço

Vamos entrar: hoje, essas turísticas ruínas têm lareira quente, para contrariar o implacável vento invernoso – que pede ao corpo as regionais capas de junco -, ou a eventual timidez fria da primavera. Tem orquídeas plantadas, carnudas e viçosas, no jardim interno, seis quartos majestáticos com o nome das donas resgatadas por Ansur (Berengela, Guiomar, Mécia, Damásia, Maria e Margarida), e imensa luz natural, autorizada pelos vidros abundantes, a pontilhar os cantos e recantos do granito imponente que no interior mora. Tem simpatia, primor e carinho. Cai, por isso, inevitavelmente, um véu de conforto sobre o meu pensamento.

Continuamos lá dentro e impressionamo-nos com as janelas generosas da sala de estar (uma espécie de fórum romano, onde os hóspedes se juntam e se misturam com os Cardoso Lima) rasgadas à pedra original, para levar os sentidos, além do caixilho envidraçado, num fôlego moderado para que o pensamento possa suspender-se, por momentos, sobre o maciço da Gralheira com as serras da Arada, São Macário, Freita e de Montemuro.

Se o tempo ajudar, limpando nuvens e estancando a torneira de São Pedro, podemos roubar 20 quilómetros à paisagem. Caso a meteorologia não esteja de bom-humor, ficamo-nos pelas texturas em camadas do maciço das serras, irmanadas pelo truque ótico da tridimensionalidade, com as nuvens densas e o nevoeiro invejoso de tamanha paisagem, a esconder-lhes as cores. Mas mesmo com o cinzento como pantone homogéneo, fado do tempo quando visito a casa no final de março, apetece ficar a ver o longe e a librar o pensamento.

Isso, ou agarrarmos um livro, um jornal, ou um passatempo-companheiro, para nos perder em cinzas de horas, transcorrendo-as, num silêncio absurdo. Ocorre-me isto, enquanto degusto o farto e nutrido pequeno-almoço, onde não falta o mel regional, num âmbar translúcido liquefeito e consistente, a escorregar pelo pão que António Cardoso Lima deixou a fazer durante a noite.

A gula agarra-se, também, ao doce de abóbora, onde nozes e amêndoas se afogam em pedaços, confecionado por Odete, a dona da casa, que cozinha com o primor de mãe para os hóspedes, como se fossem amigos de longa data.

Doce-segredo

É antiga a relação desta família com Figueiredo das Donas. De origem beirã, António Cardoso Lima, 59 anos, experienciou uma espécie de magnetismo do Paço da Torre, há cinco anos, quando voltou às ruínas com a filha Cláudia. Tinha de voltar à terra. Tinha de ter aquela bela paisagem como efeito-meditativo ao menos ao fim de semana, em família. Tinha de ser dono do Paço da Torre.

Cardoso, administrador hospitalar no Porto, mal sabia que aí começaria um périplo para conquistar a terra de Ansur, onde, coincidentemente, a avó, os tios e o pai viveram, também, como caseiros. Perdido numa divisão familiar, o Paço era um enigma por desvendar, desgovernado na memória do tempo e nas gavetas de duas mulheres.

Uma das donas, emigrara para França e, por isso, a outra perdera-lhe o rasto. Galgar terreno para chegar até ela foi uma empreitada de meses, altos e baixos de euforia e desalento, e dedos de pinça na internet e nas listas telefónicas, para desvendar o mistério. No fim, o beirão Cardoso tinha terra conquistada, quando encontrou a dona francesa, qual Ansur vociferando vitória pelas suas donas.

Enigma desfeito, novos donos, e Paço da Torre tinha alforria para ser turismo rural, com capacidade para albergar 12 hóspedes, piscina sulcada na terra, que nos dias de verão será bálsamo para acalmar o calor infernal que os deuses de Estio sempre reservam para estas terras de interior, próximas das do Demo de Aquilino Ribeiro.

Terras do Demo

Aqui estando é inevitável não pensar na prosa do escritor de Carregal: olhando as montanhas, o granito no alto sulcado e escarpado, as estradas íngremes, abismais e serpenteadas na geografia comum, a uns 60 quilómetros dali. Aquilino na memória, imortalizando a terra.

Imaginámos almocreves, transportando as necessidades da região, e generosos almargeais para onde as cabras se precipitariam. Imaginámos amores e desamores, contendas familiares, disputa de terras, mas também urzes viçosas de roxo-carregado, carvalhos imponentes, águas frescas a esventrar as serras, vento assobiando impiedoso por casas de xisto e granito, e o quente da lareira que a lenha seca tornava a noite num conforto maior para o rigor da terra sobre as gentes.

Peregrinamos mais um pouco pelos arredores do Paço da Torre e fazemos incursão obrigatória pelas termas de São Pedro do Sul, amigadas com terras do Demo, com águas de enxofre, como pacto para boa saúde, sobretudo para aliviar dores reumáticas e as vias respiratórias. As massagens termais são tentação certificada. Por falta de tempo, não me rendi ao prazer, mas hei-de fazer parecer, num futuro próximo, com que ali os largos dias de fim de semana tenham cem anos, em repouso termal.

Mais a sul, a escassa meia hora dali, embrenhamo-nos pelo centro histórico de Vouzela, guardiã de casas brasonadas, como a dos nobres Távoras, que cunharam a história com a exceção de terem conquistado título por ascensão social. Ouvimos o Rio Zela, filho do Vouga, engolfado em pedras e apressado para o mar, e levantamos a cabeça para a imponente ponte, por onde outrora, passava uma máquina engrenada num pouca-terra nervoso. Há uma locomotiva exemplar no começo dela a lembrar o tempo dos trilhos.

Desde 1990 que a linha férrea daquela região está desativada, para desconsolo autóctone, estatística vermelha a somar aos pecados criminosos da gestão pública, e desgosto dos nossos ávidos sentidos, que libram de novo o pensamento, imaginando a majestática e telúrica palete de cores da paisagem serena dos vales, em pouca-terra, servindo de rodapé a montanhas imponentes, a caminho da Beira Alta.

Um segredo que o progresso quis acabar, e que outrora revolucionou a região, abrindo aos homens da terra o horizonte de outras vidas, outras terras, e servindo o apito característico da locomotiva de relógio para camponeses prevenidos, preparando o cajado para voltar a casa.

Doce-segredo

Há, no entanto, outra confidência por desvendar, bem guardada na memória de receitas das avós vouzelenses, e que, pelos vistos, nem ao ouvido se sussurra; e do qual hoje só as mãos de alguns pasteleiros locais conseguem chegar perto. Os pastéis de Vouzela são afamados. Pecados para dietas rigorosas.

A primeira trinca traz o desalinhar folhado que se desfaz na boca, a querer misturar-se com a consistência líquida dos ovos moles do recheio farto. Parece doce simples, mas há sabedoria para a textura e para o sabor conventual.

Pequei, portanto: levei o segundo à boca, sem dó, nem pudor. E, agora que penso nisso, percebo que foi mais um acrescento à lista do pecado da gula deste fim-de-semana, depois de, no dia anterior, a Odete nos ter recebido a morcelas, migas de broa regionais, azeitonas suavemente temperadas com alho e azeite, tenro presunto, alheira, e um suculento peixe assado no forno, à maneira basca – confessou a chef -, apenas com sal e aberto ao meio, pronto a ser regado de molho de azeite e ervas quando pronto. O vinho, surpreendente, foi um frutado verde tinto do norte, e uma raridade da adega do Paço.

Mais: apercebo-me que, à noite, depois de Vouzela, e da visita às aldeias preservadas de Covas do Monte e Pena, num passeio que Cardoso nos preparou, pecaria de novo, com o eclético cardápio: uma salada de abacate, frango desfiado e salteado com figos turcos e nozes suculentas; entradas dinamarquesas, pela mão de Hanna’s, cunhado de Cardoso Lima, numa camada de pão escuro, tipo canapé, a servir de base, com cavala, ou arenque de conserva, em segundos na hierarquia, e molhos de açafrão ou maionese no topo. Degusta-se à mão, de uma só vez, e a Touriga Nacional não se queixou de o empurrar, na harmonia do paladar. Estava desvendado o segredo que levou Odete, Hanna’s e Cláudia para a cozinha ao fim da tarde, dispensando ajuda.

Mas há outro que lhe deixamos para desvendar: no Paço da Torre, o sol não se põe sempre no mesmo lugar. A ver-o-rio e as serras, da varanda dos Cardoso Lima, um pouco mais nossa, agora, há-de desvelar-se o enigma do tombar do dia, ali tão plácido e longe da azáfama diária. De preferência, com a generosidade do Tempo e a conivência do São Pedro.

Guia prático

Este é um pequeno guia com informação prática para planear a sua estadia na casa de turismo rural Paço da Torre.

Como chegar ao Paço da Torre

Saindo de Lisboa (318km) ou Porto (121km) deve seguir-se a A1 até à saída da A25 (Aveiro-Albergaria-Viseu-Guarda-Vilar Formoso- Espanha) em direção a Viseu. Desde Albergaria deve utilizar-se a saída 13 (Vouzela/S.Pedro do Sul), convergindo com a Nacional 228, e virando à direita pela Nacional 333, seguindo depois durante 16kms por Vouzela (direção ao centro) e seguir as indicações de Fataunços, para convergir na Estrada Nacional 602, seguindo até Figueiredo das Donas. Ao longo da estrada, verá uma placa de “Turismo Rural”. Siga essa via principal e encontrará nova placa de “Turismo Rural”, terminando numa rua sem saída: Rua Rainha Dona Amélia, onde se localiza o Paço da Torre.

Seguindo desde a Guarda deve utilizar-se a saída 16 (Tondela/Vouzela), seguindo a direção de Vouzela e, antes de Vouzela ao passar Fataunços, deve tomar-se a direção de Figueiredo das Donas, conforme indicações mencionadas acima. Para informações mais detalhadas pode consultar o Google Maps, fazendo uma simulação a partir do destino de origem. [Do Porto] [de Lisboa]

Sugestões de Passeios

Para um simples fim de semana, o problema será a falta de tempo para tanta oferta. Cultura, Património, Saúde, Meio Ambiente, Desportos Radicais e Gastronomia estão no elenco. O turismo de Vouzela oferece vários programas de caminhada pelas serras como o trilho da Pernoita, o trilho medieval, o caminho de São Miguel do Mato, ou o percurso das Poldras, as pequenas pontes de pedra dos rios. Há, ainda, o circuito das torres medievais, circuito dos moinhos e visitas a aldeias preservadas como Fujaco, Covas do Monte, Aldeia da Pena. Mas se preferir ir à descoberta destes percursos, não precisa de estar dependente de programas locais de turismo, pois a informação disponível no site da Câmara Municipal de Vouzela orienta-o, com indicações de como chegar. Ainda assim, se não conhecer bem a região, aconselha-se a seguir com um guia, até porque, terá acesso a privilegiadas curiosidades e informações sobre a região.

Em São Pedro do Sul as termas de água quente do enxofre, que hoje dispõem de dois balneários distintos, no caso de preferir um serviço mais personalizado, são uma ótima opção se o objetivo é ficar zen. Para viver ainda mais a montanha, o Bioparque de Pisão, em Carvalhais, em São Pedro do Sul é destino aprazível.

Depois, claro, deve deixar a dieta para depois. Ir a Vouzela e não provar os quitutes regionais é pecado, sabemos: a vitela de Lafões, rojões de porco, cabrito assado no formo, ou cozido, ou papas de milho são delícias obrigatórias. Sobre os melhores restaurantes, informe-se no Paço da Torre, pois a família Cardoso Lima já calcorreou a região para desvendar os segredos gastronómicos.

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Ana Isabel Mineiro

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