Entro na moderna Malásia para me dirigir sem demoras para as belíssimas ilhas Perhentian, onde me reencontro com a língua de Camões, antes de rumar às verdejantes paisagens das terras altas de Cameron.
Eram sete horas da manhã quando chegou a primeira de três carrinhas em que haveria de me sentar nesse dia, a caminho da Malásia. Um par de viajantes estava já instalado no banco em frente àquele que me foi destinado. Uns minutos de conversa e muitas palavras em inglês depois, descortinámos que éramos todos lusitanos. Nem queria acreditar. A oportunidade de desenferrujar o português havia finalmente chegado mas, tendo ritmos de viagem diferentes, acabámos por nos separar a meio do percurso e marcar encontro para daí a um par de dias, já em território malaio.
A visão do posto fronteiriço chegou quando faltavam apenas cinco minutos para as nove da noite e a fronteira estava prestes a encerrar. Do lado tailandês, uma típica povoação fronteiriça parecia tudo menos apelativa. Estava pejada de militares bem armados e havia postos de controlo de viaturas a cada passo. Lanternas eram apontadas ao interior do veículo na tentativa de identificar algum elemento indesejado entre os passageiros. Uma realidade diferente de todo o resto do território da Tailândia, reflexo dos problemas com que o país se debate para controlar alguns movimentos rebeldes implantados no sul do país. Para mim e para um ocasional companheiro de viagem sueco, ficar naquele fim do mundo estava fora de questão, pelo que era imperativo prosseguir e entrar na Malásia nessa noite. Mal a carrinha parou, apressámos o passo em direcção à única funcionária que ainda estava de serviço no lado malaio da fronteira. Eficientemente, dois carimbos e poucos minutos depois estávamos já na moderna Malásia, procurando transporte para a cidade mais próxima, Kota Bharu, ponto de passagem para as almejadas ilhas Perhentian. Instantes depois, a fronteira era encerrada.
As Perhentian são famosas pelas suas belíssimas praias de areia branca e pelos excelentes locais de mergulho que existem a poucas milhas de distância, em redor das ilhas. Mas muitos centros de mergulho estavam ainda por abrir, as praias encontravam-se semi-desertas e os restaurantes praticamente sem clientes. A época das monções estava ainda a terminar e os turistas só mais tarde começariam a visitar as ilhas. Debaixo de água, a visibilidade nem sempre era a melhor, mas qualquer pessoa que se aventurasse nem que fosse a fazer snorkelling seria recompensada com a visão de uma fauna rica e diversificada, incluindo as sempre apetecidas tartarugas e os inofensivos tubarões dos recifes.
De noite, um ou outro bar de praia tentava atrair os poucos visitantes com música animada e fogueiras no areal. E era noite de lua cheia quando aconteceu o reencontro com os portugueses Rita e Bruno, excelentes companhias para dois dedos de prosa e um punhado de cervejas na noite mais animada do ciclo lunar. Após tanto tempo sem ver e ouvir outros compatriotas, até as mais obscenas palavras ditas na língua de Camões soariam bem. No dia seguinte, frustrado por não poder mergulhar devido a uma irritante constipação, abandonei precocemente as ilhas da costa leste da Malásia ao encontro das plantações de chá nas terras altas de Cameron.
Depois do calor tropical das últimas semanas, a chegada a Tanah Rata, porta de entrada em Cameron, foi uma estranha mudança. Temperaturas escandalosamente baixas e chuvadas fortes e repentinas eram uma constante. Mas, depois do azul do mar e do amarelo da lua, era altura de apreciar as extensas colinas pintadas de um verde viçoso que fazem de Cameron uma das mais visitadas regiões do interior da Malásia. Aluguei uma motorizada e percorri livremente as estreitas, íngremes e curvilíneas estradas da região. Plantações de chá a perder de vista, com as árvores feitas bonsais para mais fácil tratamento e colheita, cobriam toda a extensão das montanhas envolventes.
Nalgumas plantações, trabalhadores do sexo masculino, maioritariamente indonésios, recolhiam as folhas mais novas dos arbustos para, na fábrica, procederem à secagem, corte, fermentação e embalagem do chá. Vinham das ilhas de Java e das Flores, na Indonésia, com contratos de entre três a cinco anos, sem a família, e viviam numa espécie de estaleiros construídos junto às plantações. A Malásia é extremamente moderna e desenvolvida e os mais elevados salários locais atraem os indonésios para um ofício que os malaios não desejam. O resultado do seu trabalho diário é o chá que estava prestes a provar.
Após umas quantas xícaras de um delicioso chá Boh, proveniente da homónima plantação das terras altas de Cameron, era altura de partir ao encontro dos vestígios do passado lusitano e procurar os Silva, os Pereira e demais descendentes de portugueses na costa oeste da Malásia. Alguém falará ainda português na histórica cidade de Malaca?
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.