Deixo Pequim e viajo de comboio até Pingyao, uma pequena cidade amuralhada a caminho de Xi’an, classificada Património Mundial pela UNESCO. Percorro as ruelas de Pingyao com a sensação de ter recuado no tempo, e descubro o significado de Portugal na língua chinesa. Uma surpresa francamente adequada a esta época de vindimas.
Recua-se no tempo ao chegar à pequena povoação de Pingyao. Tal como ao percorrer o Douro neste tempo de vindimas, onde ainda se espezinham as uvas com os próprios pés para criar o afamado néctar da região. Grupos cantarolando, abraçados, melodias cuja origem se perdeu na memória dos tempos.
Lembro o Sr. Queiroz de Mesão Frio. Entrar nestas muralhas de Pingyao é como abrir um dos seus garrafões de Porto, vinho caseiro aprimorado durante décadas com a sabedoria de uma vida dedicada às vinhas. Conheço bem o seu perfume. É algo único. E Pingyao, tal como esse vinho, ainda retém o doce aroma do passado. Intacto. Como nenhuma outra cidade em toda a China, consta.
Tenho a sorte de conhecer duas amigas alemãs, Mirea e Alena, e volto a não estar sozinho nesta jornada. É uma enorme vantagem pois Mirea fala fluentemente chinês. Vive na China desde há dez anos, metade da sua vida. Percorremos juntos, num táxi a pedais, toda a extensão das muralhas de Pingyao. Nas sábias palavras da UNESCO, Pingyao é um “exemplo excepcionalmente bem preservado de uma cidade Han tradicional, fundada no século XIV”. Seja. Para mim, vindo de Pequim, cidade colossal, moderna e cosmopolita, Pingyao é algo bastante mais simples. É uma enorme mudança de paisagem. De ambiente. E de proporções.
Do alto das muralhas, noto que a cidade é pouco mais do que um reduzido quadrado envolvido por esta vistosa barreira de pedra. Apenas cinco pequenas entradas permitem o acesso à cidade velha. Mas é no interior dessa figura geométrica que estão guardadas as principais relíquias do passado. Nada de prédios ou outros edifícios de mediana envergadura. Apenas casas térreas de um estilo bem definido, notoriamente de outra época. Algumas já restauradas, outras em via disso, bastantes ainda demasiado degradadas. E um ar de vida de bairro, com gente cozinhando apetitosa doçaria em plena rua. Comerciantes de pequenas lojas tentando atrair clientes. Barbeiros em intensa actividade. Dentes de ouro, luzindo aqui e ali. Velhos jogando cartas e jogos chineses em redor de mesas colocadas nas ruelas. E cheiros, muitos cheiros como em qualquer aldeia portuguesa. Um ocasional hello vindo de bocas juvenis, brincando. Ou gente sentada nos passeios saboreando um cigarro ocasional à porta de casa. E que casas, por vezes!
Muitas possuem pátios interiores belíssimos, uma espécie de jardim localizado no centro nevrálgico dos lares de outrora. Felizmente, algumas das mais representativas foram transformadas em museus, permitindo aos visitantes conhecer com maior detalhe essa faceta da cultura local. Num desses museus, conheço um amável velhote que dedica a última parte da sua vida a manuscrever caracteres chineses em faixas que vende aos visitantes. Mostra-nos umas quantas, tentando explicar o sentido do que lá está escrito. Mas mesmo sem os conseguir interpretar, os caracteres chineses pintados a negro, em grandes dimensões, são quase sempre bonitos. Aponto para uma faixa ao acaso. Pergunto o significado. “Mesmo que te tornes rico e poderoso, não esqueças os teus amigos” – explica-me o velho. Mirea confirma. É um chavão, mas não resisto a comprar. Os caracteres são esteticamente graciosos.
Saímos do museu e paramos numa espécie de tasca para almoçar. Com a ajuda de Mirea, aprendo a dizer “Portugal” na língua chinesa. Aprecio os caracteres com que se escreve a palavra e descubro, fascinado, que os mesmos significam “dentes de uva”. Tem graça. Lembro a cor que pinta as bocas lusas depois de uma malga de um bom vinho carrascão. Apetece-me brindar. Aos dentes de uva. Às vindimas. Com os votos de que das uvas deste ano resultem boas pomadas.
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.
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