Embarco numa viagem pelo Rio Amazonas. De Belém a Santarém, navego acompanhado por perigosos prisioneiros, aprecio a beleza tranquila das margens do rio, entristeço-me com a pobreza de quem lá vive e emociono-me com a solidariedade dos brasileiros para com essa gente desfavorecida. E conheço ainda as bonitas praias fluviais de Alter-do-Chão, a inaudível música brega e o invulgar encontro das águas em Manaus.
Era um momento muito esperado o que estava prestes a acontecer. Algo que, desde há muito, fazia parte do meu imaginário de viajante planetário. Navegar pelo rio Amazonas num barco de passageiros. Numa rede pendurada no convés ou no ilusório luxo de um “camarote”. Quando me aproximei do barco, atracado numa doca de Belém, sorria interiormente. Estava entusiasmado. Foi quando me informaram do imprevisto.
“Amigo, o Rodrigues Alves não vai sair” – gritou um homem de dentro do navio, para logo acrescentar como resposta à perplexidade que – suponho – se estampou no meu rosto: “Problemas técnicos”. Pretendia subir o rio até Santarém e o Rodrigues Alves era precisamente o barco para o qual tinha comprado passagem. E, nos dias seguintes, não estavam previstas saídas de outras embarcações. Sentia-me algo azarado quando alguém disparou, em jeito de solução: “Olhe, o Clívia também parte hoje; sai agora às seis da outra doca”. Eram 18:15.
Vinte minutos depois de uma condução endiabrada pelas ruas de Belém, muitas buzinadelas e uma paragem numa agência para trocar o bilhete, chegámos à “outra doca”. “Está a sair! Está a sair!” – gritou um velhote, agitando os braços, mal me viu descer do carro com a mochila. Corri como um desalmado e entrei no barco. Um minuto depois – não mais! -, o Clívia soltou amarras e zarpou. A sorte tinha voltado.
Nessa noite, a bordo, os passageiros começavam a conhecer-se partilhando conversa, cerveja e comida. Descobriam-se elos de ligação entre vidas com histórias diferentes. Grupos de homens jogavam dominó, acaloradamente. No convés, um DVD da Banda Calypso – idolatrado grupo paraense de forró – assegurava a boa disposição dos passageiros. O ambiente a bordo era tranquilo e aprazível. Com o passar do tempo, iam surgindo os primeiros namoros, efémeras relações de uma noite de sexo na escuridão do convés superior ou na privacidade de um camarote. Só quando o dia amanheceu, deslumbrante e solarengo, é que o Amazonas se destapou e deixou revelar uma realidade menos risonha.
Ao longo de todo o segundo dia da viagem, pirogas com mulheres e crianças de tenra idade aproximavam-se do barco, à sua passagem, na expectativa de lhes serem atirados algum víveres. “É uma zona muito carenciada” – disse-me, a propósito, um aposentado oficial da marinha que seguia a bordo. Dava para perceber. As palhotas que se viam nas margens eram demasiado básicas para serem confortáveis, demasiado remotas para terem água canalizada ou electricidade, demasiado pequenas para albergar uma família numerosa.
Nas pirogas, os quase bebés abanavam as mãos como sinal de que pediam algo. E alguns passageiros vinham preparados para partilhar coisas suas com essa gente humilde. “O que lhes deram?” – perguntei a um casal que tinha acabado de jogar borda fora, na direcção de uma piroga com uma velhota e três crianças, um saco plástico com algo dentro. “Roupas, brinquedos e bolachas” – responderam. Um dos miúdos recolheu o saco da água. A velhota acenou, agradecendo. Eles retribuíram o aceno. Solidariedade pura de gente que tem um pouco mais para com aqueles que têm muito menos. Instintivamente, vasculhei a mochila e partilhei também os meus pertences.
Em Almeirim, um grupo de prisioneiros algemados entrou no navio. Vinham vigiados por meia dúzia de polícias armados. Um burburinho instalou-se imediatamente entre os passageiros. Pouco tempo depois, já todos sabiam o que se estava a passar. Dizem-me que os presos “destruíram a delegacia” de Almeirim e, por isso, estavam a ser transferidos para Santarém. “São muito perigosos” – acrescentou uma senhora de idade, conferindo um tom sério à afirmação. O último dia a bordo do Clívia foi, por isso, diferente. Mais tenso. As cadeiras de plástico existentes no convés superior estavam tomadas pelo grupo de prisioneiros e respectivos vigilantes. E, por muito que os passageiros se esforçassem por agir com naturalidade, era difícil ignorar a presença das armas dos polícias, as algemas dos presos e, principalmente, os seus ares revoltados.
Atracámos em Santarém na noite seguinte. Para mim, era o ponto em que a viagem de barco terminaria. Pretendia conhecer as praias fluviais do simpático povoado de Alter-do-Chão antes que o Sairé, a maior festa popular da região, tomasse conta das ruas do lugarejo. Por todo o povoado ultimavam-se os preparativos para tão importante acontecimento e, à noite, já havia festas com música ao vivo. Sou fã incondicional da música popular brasileira e apreciador de ritmos como o samba, o forró, o pagode e muitos outros de expressão regional. Mas, em Alter-do-Chão, só se ouviam os inaudíveis ritmos brega. Quedei-me pelas atractivas praias fluviais.
Dias depois, saí de Alter-do-Chão com destino a Manaus, onde visitei o grandioso Teatro Amazonas – considerado o principal património arquitectónico do Estado. Belo edifício. E, certo dia, face à ausência de apelos na cidade capital do Amazonas, dirigi-me ao invulgar “encontro das águas”, o ponto em que os rios Negro e Solimões se tocam sem, todavia, se misturarem. São dois rios de cor, acidez e velocidade diferentes que, a dado momento, se juntam e permanecem como um só, embora dividido em duas metades distintas. De um lado, negro e ácido. Do outro, barrento. “Seguem lado a lado durante sete quilómetros” – explicou o barqueiro que me levou ao local. “Depois o rio fica de uma só cor, mas as águas nunca se misturam totalmente” – concluiu.
Era como os passageiros do navio e as crianças das pirogas – pensei. Lado a lado mas separados. Oriundos de mundos distintos. E sem nunca se misturarem. Só a solidariedade esbatia essas diferenças.
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.
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