Souks, gente, odores, azáfama, pregões, muita alma. Uma zona histórica fotogénica e carismática. Um povo amável e solícito. A magnânima mesquita Ummayad, em cujo pátio se cruzam mulheres de chador com crianças a jogar futebol. A beleza da cidade velha e o seu bairro cristão. Cafés como o Al-Nawfara, onde damascenos de todas as idades contracenam de shisha nos beiços. E os souks, sempre os souks, espelhos de uma cidade efervescente. Para complementar, uma curta viagem à vizinha Maalula, onde ouvi pela primeira vez aramaico. Uma introdução em cheio à admirável Síria.
Ainda há pouco cheguei, mas tudo o que encontro na Síria é gente hospitaleira. Vagueio pelos souks e ninguém me insulta, ninguém me maltrata, ninguém me desrespeita. Cruzo-me com gente a quem passo despercebido, ou que tem vontade de conversar, de ajudar, de saber mais sobre mim, a minha família, o meu ordenado, o meu país. Gente que devolve o troco exacto sem ludibriar o forasteiro. Gente humilde e solícita. Gente de paz.
Onde estão os habitantes desse tal “Eixo do Mal” de Bush e Bolton? Onde fica a perigosa nação que atemorizou amigos e conhecidos quando lhes falei nesta viagem ao Médio Oriente? Dela não vejo vestígios. Não deve ser esta Síria.
Assim que cheguei a Damasco, dirigi-me ao gueto mochileiro em Sharia Bahsa. É lá que estão os hotéis baratos, concentrados em duas ou três centenas de metros de ruas estreitas com vendedores ambulantes, tascos que servem shoarma e falafel, cafés e mercearias de bairro.
No Hotel Gazhal, lotado como quase sempre, ofereceram-me como alternativa um colchão no terraço. Teria vistas sobre a cidade embora sob um céu quase sem estrelas, e partilharia o terraço com o vento frio das noites de Damasco. Podia ser pior. Instalado, estava pronto para explorar a cidade.
Damasco é uma cidade fascinante. Especialmente a velha Damasco, recheada de souks, pregões, barulho, gente, vida e alma. Foi por onde andei a maior parte do tempo. Perdendo-me nas ruelas e mercados. Entrando em becos que não raras vezes desembocavam apenas na porta de alguma habitação. Andando sem rumo nas ruas limpas do quarteirão cristão, onde a arquitectura é elegante, os hotéis mais chiques e onde até se encontram lojas que comercializam bebidas alcoólicas. Observando tacões altos e calças justas lado a lado com mulheres de negro integralmente cobertas.
Entrando na bela e majestosa mesquita Ummayad, pejada de crentes muçulmanos e crianças brincando, correndo e até jogando futebol no seu enorme pátio. Provando o mais famoso gelado de Damasco, na sempre apinhada geladaria Bakdash, onde rechonchudos damascenos se acotovelam por um cone de calorias. Visitando lojas e ateliers de artes diversas, como uma loja de extraordinários candeeiros de fabrico artesanal que encontrei na Sharia al-Qaimariyya. E, claro, sentando-me em cafés para tomar chá e fumar shisha entre velhos e jovens de Damasco. Sem surpresa, voltei aos souks uma e outra vez. Diariamente. Não conheço muitas capitais tão absorventes como Damasco.
Certo dia, caminhava na velha Damasco com Douf, companheiro de ocasião holandês que havia conhecido na Jordânia e reencontrado horas antes. Vínhamos do Museu Nacional de Damasco, cuja peça mais importante em exposição é uma pedra com o alfabeto Ugarit nela gravado, e que muitos crêem ser o mais antigo alfabeto conhecido. Merecíamos descanso. Parámos na esplanada do café Al-Nawfara, pedimos chá e shisha, e por lá ficámos.
Na mesa à minha frente, um grupo de jovens de ambos os sexos confraternizava. Entre rapazes alegres e raparigas de véu na cabeça, uma jovem de longos cabelos pretos escorrendo pelas costas destacava-se do grupo. Não usava véu. Pediu que fotografasse o grupo, trocámos algumas palavras de circunstância. Quando cruzou a minha mesa para sair do Al-Nawfara, olhou-me brevemente e perguntou: “Encontramo-nos cá amanhã?”. Foi das raras vezes que uma mulher Síria me dirigiu a palavra por iniciativa própria.
Depois de um par de dias a vaguear sem rumo pelas bancas dos souks de Damasco, fiz-me ao caminho para norte, rumo à pequena vila de Maalula, um enclave cristão no centro da Síria. Tinha um motivo muito particular para empreender a distância que separa Maalula da capital Damasco: Maalula é talvez o único lugar do mundo onde ainda se fala – e ensina – Aramaico, a “língua de Jesus”.
Uma pequena carrinha com uma dezena de Sírios deixou-me na rotunda que faz de praça central. As casas estão dispersas encosta acima. Duas estradas circundam o morro rumo aos mosteiros e igrejas no seu topo. Há várias igrejas, uma mesquita. Seriam quase duas da tarde de uma sexta-feira quando visitei o Mosteiro e Igreja de São Sérgio. De dentro das capelas, ouviam-se claramente os muezins chamando os fiéis para a celebração na mesquita. Sendo sexta-feira, toda a cerimónia foi transmitida para a vila através dos altifalantes colocados no exterior do minarete. Um sorriso colocou-se-me no rosto ao notar a feliz coincidência. Ali estava eu dentro de uma igreja ouvindo o que se passava na vizinha mesquita. Harmonia, pensei.
Saí das ruas principais e meti-me num labirinto de pequenas ruelas, muitos quelhos de terra batida sem saída, outros serpenteando as casas maltratadas. Fui subindo a encosta até entrar por engano num terraço paredes-meias com o muro de uma igreja. Ao lado ficava a casa de Elis Tagra, um senhor de aspecto respeitável que se apresentou assim que me viu a rondar a sua casa. Perguntei-lhe se falava Aramaico.
Acenou com a cabeça e sorriu. Elis era professor de Aramaico. Garantiu-me que falava na “língua de Jesus” com o seu filho Joseph, que entretanto se juntara à conversa. A meu pedido, partilharam comigo um pouco desse idioma sibilino. E ali fiquei, embevecido com o privilégio de ouvir palavras para mim indecifráveis, em Aramaico, até que um aperto de mão selou o encontro ocasional. Como tantos outros sírios que conheci, Elis Tagra foi sempre cordial, hospitaleiro e desinteressado. Continuo sem encontrar vestígios da “outra” Síria.
O projecto Cairo - Teerão foi uma viagem terrestre pelo Médio Oriente, com a duração de três meses. Teve início no Cairo, capital do Egito, e término em Teerão, capital da República Islâmica do Irão. As crónicas foram originalmente publicadas no suplemento Fugas do jornal Público.
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Olá Felipe,
Meu bisavô paterno era sírio, e dele carrego ainda o sobrenome. Obrigada por compartilhar conosco essa “Damasco” que não pude conhecer. Você me fez reviver as histórias que um meu tio-avô me contava quando eu era pequena. Lembro sempre que ele me contava como a cidade era bela (ele a visitara em meados dos anos 90) e me prometia que um dia me levaria a Damasco.
Mais uma vez obrigada, mesmo.
Um abraço,
Patricia Kalil