Por mais curto que seja o caminho – apenas dois dias – fica o sabor de entrar numa zona há pouco tempo proibida: as montanhas do estado de Shan, próximas de Kalaw, em Myanmar (antiga Birmânia), estão abertas aos estrangeiros e merecem bem a visita. Viagem ao Norte de Myanmar.
A pé pelo Shan, em Myanmar
A província ou estado do Shan, no Norte de Myanmar, ocupa cerca de um quarto do território do país e é uma das regiões mais fascinantes, quer pela paisagem, quer pelas muitas tribos que aí habitam, ainda arredadas culturalmente de globalizações e outros colonialismos. Já lá chegaram os plásticos e utilidades chinesas, os mais jovens já vão usando jeans e bonés de pala, que deixam quase toda a gente com ar de idiota – sobretudo se usar um longyi, a saia masculina tradicional. Mas basta ir até uma aldeia mais afastada da estrada e percebe-se que a sabedoria não desapareceu: ainda sabem fazer tudo, de cestos a medicamentos, e constroem as suas próprias casas com madeira e tiras de bambu. Fazem as suas roupas, chapéus, cintos e cordas, facas, pão, charutos, ferramentas agrícolas e especiarias; até as crianças parecem fazer os seus brinquedos. Provavelmente gostam dos bonés por não saber fazê-los.
Na vila de Kalaw, onde um vibrante mercado tem lugar a cada cinco dias, podemos ver muita desta sabedoria em exposição e à venda, mas em dois dias de caminhada entre aldeias das tribos Palaung, Pa-O e Tenuh, o contacto com as populações é muito mais directo. E somos um divertimento extra, em lugares onde pouco mais se faz do que trabalhar de sol a sol. Não vamos às aldeias ver os “típicos”, como quem vai ao jardim zoológico; é mais o contrário: enquanto nos fascinamos porque há mulheres a moerem arroz, outras que põem curcuma a secar, um homem chega carregado com ervas medicinais que dispõe em esteiras, e alguns jovens jogam o futebol tradicional com uma bola de bambu, a aldeia em peso vem espreitar-nos.
O guia cozinha e os miúdos desfilam na casa emprestada, os mais velhinhos vão buscar os irmãos um a um para verem os estrangeiros. As anciãs chegam com os seus cigarros e sentam-se sem vergonha, fumando até aos dedos sem tirar os olhos de nós; as mais novas vêm com os bebés pendurados no peito e debruçam-se sobre mim para – imagine-se! – me gabar as sobrancelhas, “very beautiful!”
O guia Ronald é um muçulmano, de origem indiana, com um excelente inglês e uma impecável educação local. Guiou-nos para fora de Kalaw através de campos de flores amarelas e levou-nos por uma floresta densa – o que resta da original, depois do multiplicar da população e da procura de solos férteis -, por onde subimos até uma zona de chá. A natureza está completamente modificada pelo homem, mas mantém um ar harmonioso e cuidado. As montanhas da zona não ultrapassam os mil e quinhentos metros, algumas encimadas pelas casas baixas de aldeias e outras por zedis, construções em forma de sino branco que assinalam a presença do budismo. Pelas plantações de chá, mulheres afadigam-se a tratar dos arbustos e outras passam com madeira às costas, para cozinhar mais tarde. São Padaung, sorridentes mas tímidas, com a sua saia tradicional e umas grandes argolas de bambu à volta da cinta, anunciando que são casadas.
Mais para baixo, as aldeias mudam de etnia, mas nunca nos sentimos rejeitados. Somos acolhidos pelas crianças que gritam “ingli” (inglês, estrangeiro) antes de se esconderem atrás do sorriso da mãe, e no fim vêm todos gritar “bye bye”. No fundo dos montes há arrozais e búfalos, guardados por homens que riem e deitam a língua de fora quando apontamos a máquina fotográfica. O caminho endireita-se, atravessamos a linha de comboio e já estamos outra vez em Kalaw. Mesmo a pé, foi demasiado rápido.
União de Myanmar?
Até 1989, Myanmar chamava-se Birmânia. Quase completamente desconhecido do Ocidente, o país tinha nascido e desaparecido algumas vezes durante a sua história, fruto de guerras, divisões e uniões dos diversos reis e príncipes que dominavam o território. Composto por uma manta de retalhos de diferentes etnias, foi unificado mais uma vez pelos britânicos nas primeiras décadas do século XX, abrindo também as suas portas a indianos, nepaleses e chineses. Mas regiões montanhosas, como a província do Shan, continuaram sem nenhum controlo directo e permanente do Reino Unido.
Durante a Segunda Guerra Mundial, os oposicionistas uniram-se ao Japão para se verem livres dos britânicos, mas depressa perceberam que a troca não era boa e, no fim da guerra, Bogyoke Aung San, pai da Prémio Nobel da Paz Aung San Su Kyi, exigiu a independência imediata, que só se concretizou em 1948 – um ano depois do seu assassinato. Com a independência, o país parecia mais uma vez ir desintegrar-se em tribos, guerrilhas e grupos políticos, apoiantes ou não do vitorioso Mao Tse Tung, e assim continuou durante uma década.
Nos anos sessenta, o general Ne Win instalou um governo militar e anunciou que ia seguir “o caminho birmanês para o socialismo”; aparentemente, nem ele nem os seus sucessores conseguiram encontrar o dito caminho, e Su Kyi continua a passar mais tempo na prisão do que em liberdade, sobretudo desde que o seu partido ganhou as eleições, em 1990. A economia também continua miserável e, apesar das pressões da ASEAN, o governo militar continua a manter um reino de terror, a utilizar trabalho escravo em obras públicas e a ter como principal fonte de rendimento a exportação de ópio. Muitas zonas do Shan estão proibidas a estrangeiros, enquanto a guerrilha anti-governamental e os senhores do ópio continuam uma guerra com muitas facetas, de que quase não se fala. No resto do país não há qualquer risco para os turistas.
Guia de viagens
Este é um guia prático para trekking nas montanhas do Shan, com informações sobre a melhor época para visitar, como chegar, pontos turísticos, os melhores hotéis e sugestões de actividades na região.
Quando viajar para Myanmar
A melhor época para fazer uma viagem a Myanmar é o Inverno, de Outubro a Fevereiro, para escapar à estação quente que antecede a monção de Junho – Setembro.
Como chegar
Não há voos directos, e como Myanmar também não tem representação diplomática em Portugal, o melhor é voar para Bangkok, capital da Tailândia; uma combinação da TAP com a Thai Airlines, via Frankfurt, fica por cerca de 1.600€. Em Banguecoque deve dirigir-se à Embaixada da União de Myanmar, na Rua Sathon Neua 132, para adquirir um visto antes de voar para Yangon; o voo custa aproximadamente 280€. Uma vez em Yangon, pode escolher entre avião, comboio ou autocarro até à cidade de Mandalay, de onde também não faltam autocarros para Kalaw. O guia, obrigatório para fazer o trekking, pode ser contratado em qualquer hotel da povoação.
Onde ficar
Há lugares para todos os gostos: em Mandalay, o Mandalay View Inn, ao pé do teatro de marionetas; em Kalaw, o Winner Hotel é bem visível, junto à estrada. Durante o trekking, será o guia a decidir a aldeia onde vai dormir.
Gastronomia
Durante o trekking pelas montanhas será o guia que se encarrega disso. Em Kalaw terá de perguntar, mas a terra é pequena e tudo fica perto. O pequeno restaurante nepalês Everest é modesto mas recomendável. A comida birmanesa é quase sempre composta por arroz e estufados (caris) variados, geralmente de galinha, peixe e camarão; aliás, o camarão é usado para temperar quase tudo. Sopa de massa com peixe (mohinga) é o pequeno-almoço tradicional, mas qualquer pensão lhe arranja um pequeno-almoço europeu.
Informações sobre Myanmar (Birmânia)
A União de Myanmar (antiga Birmânia) foi abrindo lentamente as portas ao turismo, primeiro com o monopólio do Estado e agora com pequenas pensões e restaurantes familiares que ajudam a economia local. Desaconselhamos o uso dos serviços da empresa turística MTT, que pertence ao Estado, a menos que goste da ideia de financiar uma das mais repressivas ditaduras asiáticas.
O custo de vida é muito baixo: 5 a 15 dólares por um quarto duplo, 2 a 5 dólares por uma refeição. Aconselha-se levar dólares americanos em notas de 50 e 100; 1 USD vale cerca de 1.100 Kyats, a moeda local. Deve levar dinheiro para toda a viagem, pois não há caixas automáticas e nem todos os bancos fazem câmbio – o melhor é mesmo pedir a alguém numa loja que lhe compre os dólares. A língua estrangeira mais falada é o inglês, e grande parte das pessoas nas cidades sabe dizer algumas palavras. Em termos gerais de alimentação, transportes e dormidas, Myanmar não é um país de aconselhar a quem se preocupa muito com o conforto.
Seguro de viagem
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