Percorro o noroeste do Vietname ao encontro das minorias étnicas da região de Sapa. Dias de trekking rodeado por trajares tradicionais, costumes únicos, preparativos para um casamento e muito vinho de arroz.
Ansiava desde há muito conhecer o noroeste do Vietname. É lá, na região de Sapa, próximo da fronteira com a China, que vivem muitas das minorias étnicas que ainda conservam trajares típicos, costumes e cultura únicos e dialectos próprios indecifráveis para o comum dos vietnamitas. Daí que decidi apanhar um comboio nocturno na estação principal da capital Hanoi em direcção a Lao Cai, de onde haveria de seguir montanhas acima rumo a Sapa, ponto nevrálgico para exploração da região.
Mal chegado a Sapa, parecia que um burburinho anormal inundava a cidade. E um colorido especial. Dia de mercado, constatei logo a seguir. Centenas de pessoas trajando roupas estranhas percorriam as ruas da povoação. As comunidades das redondezas, de diferentes minorias étnicas, acorrem a Sapa para comprar víveres e vender os seus produtos todos os sábados. Cheguei no dia exacto. Curioso, num ápice encontrava-me imerso no mercado. Grande azáfama, pessoas por todo o lado, faces e roupas diferentes. Parei num ponto estratégico e deixei-me ficar, observando, encantado, de câmara fotográfica sempre a postos.
Predominavam os H’mong Pretos, com as suas roupas de um azul indigo inconfundível. Mulheres, principalmente, muito novas ou muito velhas. Usavam técnicas de venda incisivas e de extrema perseverança. E algum humor até, se o viajante for capaz de os encarar descontraidamente. Eu levo cerca de três meses na estrada. Os vendedores, condutores de motocicletas, empregados de lojas, restaurantes e similares, já não me conseguem incomodar com a sua persistência.
– “You buy from me?”, pergunta-me uma miúda H’mong aparentando nove ou dez anos de idade, num inglês rudimentar mas ainda assim admirável, ao mesmo tempo que me mostra uma espécie de berimbau manufacturado.
– “No, thank you”, respondo, sorrindo.
– “Why not?”, pergunta de imediato, como se fosse preciso uma razão para não querer comprar algo.
– “I don’t need it, thanks”, defendo-me.
– “Why don’t need?”, insiste, numa dicção quase cantada.
– “I already have one”, admito. Na verdade, tinha adquirido um berimbau, minutos atrás, a uma outra H’mong mais nova ainda. E é então que sou surpreendido com a seguinte afirmação, uma imaginativa justificação para a necessidade imperativa de comprar que era suposto eu sentir:
– “You need two. One for you, one for girlfriend.”
– “No, thank you”, rejeito a sugestão.
– “Why not?”, e tudo recomeça novamente. Sinais do contacto cada vez mais frequente com turistas comparativamente mais endinheirados, imagino.
Mas a minha atenção recaía principalmente nos elementos da tribo Dao, sempre sorridentes e amáveis, menos interesseiros do que os vizinhos H’mong e facilmente distinguíveis pelo ornamento que todas as mulheres usavam na cabeça. Uma espécie de chapéu de um vermelho extremamente vivo, muito bonito. Haveria de os encontrar mais tarde, nas montanhas circundantes, e comprovar que são genuinamente simpáticos e nada incomodativos, mesmo quando tentam vender o seu artesanato.
Terminada a odisseia pelo mercado e após um pequeno-almoço tardio, juntei-me a um grupo de cinco outras pessoas e partimos por caminhos e veredas das montanhas da região. Devo admitir que, desta vez, o grupo não era particularmente interessante. Nem sempre se tem essa sorte.
No segundo dia de caminhada, ao chegar a uma aldeia da minoria Thai, exímios agricultores que vivem nas margens férteis dos cursos de água, uma enorme surpresa nos aguardava. Para daí a dois dias estava marcado o casamento de uma das filhas dos anfitriões e intensos preparativos tinham já lugar. Familiares das redondezas chegavam a conta-gotas, proporcionando pares de braços adicionais para ajudar nos preparativos. A azáfama era intensa. Limpavam e preparavam a zona onde haveria de decorrer a festa do casamento. A espaços chegava um e outro porco de pernas atadas, estridente, preparado para a matança. Novos cachimbos de bambu eram feitos ali à minha frente e até novos pauzinhos de bambu pintados de cor-de-rosa tinham sido preparados para a refeição da boda e secavam ao sol já gasto daquele final de tarde.
À noite, homens e mulheres tomavam as suas refeições separados. As mulheres falavam alegremente enquanto na esteira de bambu que servia de mesa ao grupo de homens, garrafas de vinho de arroz corriam livremente de mão em mão. Sou convidado a brindar com o anfitrião. De uma golada, como manda a tradição. Depois com o irmão. E o primo. E não sei com quem mais. Um copo, outro e mais outro, sem hipótese de recusar sem que isso fosse tomado como uma ofensa à hospitalidade Dao. Por sorte, o vinho de arroz não é demasiado forte. É como que um bagaço português mas com menor teor alcoólico. Já noite dentro, fui dormir, satisfeito. Com os mais sinceros votos de felicidade para toda a família. E que o vinho de arroz não se acabe durante a boda!
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.