Regresso ao ambiente urbano e encaro de imediato as particularidades das grandes cidades asiáticas: trânsito caótico, poluição desmedida, barulho em excesso. Em contrapartida, ouço esses sons estrambólicos vindos das gargantas mongóis e presencio um casamento tradicional. Ulan Bator, capital da Mongólia.
Depois de semanas percorrendo a Mongólia rural sinto que já não estou habituado a grandes cidades. Ainda para mais asiáticas. Ulan Bator é como que uma suave introdução ao mundo caótico das metrópoles deste populoso continente. Trânsito infernal, poluição que dificulta o simples acto de respirar, gente de máscaras na face. Estranho. Mas nada que se compare ao que encontrarei na China, antevejo.
Percorro as ruas da cidade à procura de algo específico. Tento perguntar. Tinha como incumbência, desde Portugal, conhecer a extraordinária arte do canto gutural, exclusividade mundial dos intérpretes mongóis. Um tio, amante das peculiaridades sonoras existentes em qualquer canto do mundo, falou-me desta arte. Encontro a resposta num café frequentado por forasteiros. Assisto a um espectáculo. Os sons conseguidos com essa extravagante técnica são impressionantes. Ninguém na plateia fica indiferente. Mesmo que a musicalidade no seu todo seja como que monótona e despida de alegria. Mas é algo único. E seguramente muito difícil. Aplausos. Abandono a pequena sala satisfeito pela experiência.
Cá fora, outra surpresa. O meu caminho cruza-se com o de um par de noivos em trajes tradicionais. Um casamento a decorrer. Passeiam-se pela Sukhbaatar, a praça principal de Ulan Bator. É um rectângulo de proporções desmesuradas que marca o centro da cidade. Aproximo-me. Observo o casal, atento ao trabalho habitual de fotógrafos e operadores de câmara. As madrinhas – suponho serem as madrinhas! – vestem belos fatos de cerimónia sobre os quais usam faixas a lembrar as vencedoras dos concursos de beleza feminina. Os noivos notam a minha presença. Não é difícil, sou a única pessoa de face ocidental nas proximidades. Peço permissão para fotografar. O casal parece feliz pelo interesse que demonstro. Posam imóveis como estátuas sorridentes. E continuam a posar. Sempre. Não consigo fotografias espontâneas. Desisto. “Thank you” – agradecem a sessão fotográfica. Desejo felicidades. E parto à descoberta da cidade.
Descortino que Ulan Bator tem duas caras bem distintas, consoante as condições climatéricas. Ora cinzenta, tristonha, sem graça, quando um céu escuro, cores pálidas e alguma chuva fazem com que passear nas ruas seja um desconsolo. Ora radiosa, alegre, interessante mesmo sem deslumbrar, quando os raios solares aquecem as cores dos edifícios e as qualidades da cidade parecem ressurgir. Prefiro a segunda.
Com bom tempo, aprecio a arquitectura do Mosteiro Gandan Tegchilin, ponto de peregrinação obrigatório para quem visita a cidade. Deixo-me perder por ruas de menor dimensão, espaços urbanos onde gers tradicionais convivem com prédios modernos. E reaprendo a atravessar as ruas, esgueirando-me por entre carros que nunca param. O trânsito é desordenado, as regras como que inexistentes, a buzina o mais importante instrumento das viaturas. Mudar de passeio é uma aventura.
Decido abalar de novo para as montanhas, em direcção ao Parque Natural de Terelj, relativamente perto de Ulan Bator. Apenas por um par dias. Para relaxar. O barulho dos automóveis da grande cidade já não se faz ouvir. Relembro as melodias do canto gutural e tento entoar algo parecido. A tradição sobrepondo-se ao progresso descontrolado. Pelo menos na minha cabeça, sob esta lua matinal que teima em não desaparecer do horizonte, por cima dos gers, das vacas, das montanhas.
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.