Sem a certeza de poder prosseguir viagem após Uyuni – em virtude de manifestações e bloqueios de estrada -, atravesso a fronteira do Chile com a Bolívia. Passo por lagoas incrivelmente belas e pelo maior planalto de sal do planeta, antes de pernoitar num hotel construído exclusivamente com sal. À chegada a Uyuni, perante os meus olhos, a linha de caminho-de-ferro é dinamitada e as dúvidas sobre se seria sensato continuar adensam-se.
Ainda no Chile, a internet era o meio privilegiado para acompanhar de perto a tensa situação na Bolívia. O periódico La Razón titulava: “La Paz está sem água, combustível e há racionamento de alimentos”. “Manifestantes asseguram que os bloqueios de estradas são para continuar”. “Camionista assassinado em Sucre – a primeira vítima do conflito”. Os operadores turísticos confirmavam a conjuntura. Algumas embaixadas estrangeiras aconselhavam os seus concidadãos a abandonar o país. Não sabia bem o que fazer. A Bolívia era um destino no topo da lista de prioridades desde que iniciei esta viagem. Tentei convencer-me. O sudoeste do país é demasiado remoto para ter verdadeiras estradas – logo, não poderia haver bloqueios – pensei. O pior que poderia acontecer era não ser possível prosseguir viagem, depois de Uyuni, e ter que regressar ao Chile. Decidi arriscar.
Na fronteira, à entrada da Bolívia, um casal norte-americano que saía do país confirmava os piores receios. “Não é perigoso, mas as estradas estão todas bloqueadas e há viajantes retidos em várias cidades”, afiançaram, para depois concluir: “De Uyuni para a frente não é possível prosseguir, mas talvez possas furar os bloqueios, desembolsando duzentos ou trezentos dólares”. Quando imergi nas fabulosas paisagens dos planaltos bolivianos, estava já resignado. O resto da Bolívia teria que esperar. Iria apenas até Uyuni.
Entrei num jeep juntamente com outros cinco viajantes. Seguíamos num sentido sul-norte, sempre próximo da linha divisória com o Chile, e as paragens eram frequentes para permitir a exploração de algumas das mais emblemáticas atracções da região. A Lagoa Branca, imediatamente após a fronteira. A Lagoa Verde. A Lagoa Colorida, que apresentava uma palete multicolor onde predominavam tons avermelhados, fruto da existência de algas microscópicas que serviam de alimento a um grupo de flamingos. Mais adiante, um batalhão dessas graciosas e rosadas criaturas alimentava-se na denominada Lagoa Hedionda. Encontrava-se quase gelada mas era uma das mais bonitas lagoas que já havia visto, apesar do nome desencorajador.
Penetrámos pelo território boliviano a caminho da maior superfície de sal de todo o planeta. Na verdade, o Salar de Uyuni é o principal motivo que traz tantos viajantes a estas paragens e compreende-se os motivos. Um terreno incrivelmente plano e branco, a perder de vista, com algumas elevações montanhosas em redor, proporcionava uma imagem única e espectacular. Tudo era imaculadamente branco. Adiante, a Ilha de Incahuasi, rodeada de sal e povoada de cactos enormes, oferecia uma interessante alteração visual. Noutro local, um trabalhador amontoava sal com uma pá, em elevações piramidais, para secagem e posterior purificação. “Na Bolívia, não há dinheiro para máquinas”, assegurava o guia, face à óbvia ausência de maquinaria pesada nas imediações.
Percorrer de jeep parte dos doze mil quilómetros quadrados desse monstro salgado espantou todos aqueles com quem partilhava a viatura mas, à noite, nova surpresa. Por muito que se saiba sobre um hotel construído exclusivamente com blocos de sal, nada como vivenciar a experiência. Ao segundo dia, pernoitámos numa dessas excentricidades bolivianas: o Hotel Marith, localizado na povoação de Atulcha.
Durante o percurso, avistámos ainda um vulcão activo, de seu nome Olhague; parámos por breves instantes no lugarejo de San Juan del Rosário, onde uma velhota separava quinua – o cereal mais utilizado na culinária dos altiplanos; e assistimos à fúria explosiva dos Geysers Sol de la Mañana, a 5.000 metros de altitude, onde um intenso cheiro sulfuroso, lamas borbulhantes e um barulho assustador impunham respeito.
À chegada a Uyuni, depois de três dias sem acesso a informações noticiosas, indaguei sobre a situação dos bloqueios nas estradas bolivianas. “Ontem o congresso reuniu em Sucre e os manifestantes decidiram dar uma trégua de três semanas ao novo Presidente”, afirmou a gerente de uma pousada. Rejubilei. Podia prosseguir para o interior do país. A estação de caminho-de-ferro ficava do outro lado da rua. Saí da pousada com uma pernoita reservada e a decisão de seguir para Potosí no dia seguinte.
Na rua, pessoas corriam desvairadas e homens de farda verde ordenavam aos transeuntes que saíssem dali. Agitavam os braços virados para mim e outros viajantes, exaltados, para que corrêssemos numa direcção específica. Segundos depois, um estrondo brutal. Assim começava uma manifestação. Os de verde eram mineiros e tinham acabado de dinamitar a linha de caminho-de-ferro. Afinal, os problemas não tinham ainda terminado.
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.