Na Índia, país onde nasceram algumas das mais importantes religiões do mundo, a cidade de Varanasi é uma das mais sagradas e místicas. Um roteiro de viagem de encontro às margens do Rio Ganges, a principal atracção de Varanasi, no Estado de Uttar Pradesh, Índia.
Chegada a Varanasi
Cheguei de comboio e, talvez por isso, a cidade não me impressionou. Parecia mais uma interminável e agitada povoação indiana, com a mesma confusão de trânsito em que se misturam motoretas, riquexós a pedal e motorizados, vacas e muitos peões. Em alguns lugares o chão nem se via, coberto que estava por um mar de gente em movimento. Cartazes garridos anunciavam dentistas, astrólogos, lojas minúsculas a abarrotar de mercadorias até transbordar pela rua.
Numa rotunda, um polícia num pedestal esbracejava em vão, tentando pôr ordem naquele caos tão indiano e acolhedor. Rompi a pé e de riquexó até às ruelas estreitas e escuras da cidade antiga, onde me perdi na procura de um hotel calmo e limpo, que me albergasse durante o resto da semana.
O local onde me instalei, tal como a maioria das casas da zona, escondia um pátio dentro da sua fachada alta, à volta do qual se distribuíam modestos quartinhos. Pertíssimo do rio, a atracção principal de Varanasi, recebia dele o frio e a humidade que sempre traz o mês de Janeiro. De manhã são frequentes os nevoeiros, e à noite sabiam bem os cobertores de lã que nos punham nas camas.
No labirinto das ruas, descobria os pequenos comércios pouco dedicados aos turistas estrangeiros: lojas que fabricam requeijão, cozido à porta em grandes woks fumegantes e com um empregado atento a retirar a capa de pó que se vai acumulando por cima; restaurantes onde as massas frescas são feitas manualmente, e vão caindo para um jornal pousado no chão de terra batida; boutiques com frasquinhos de vários tamanhos, para levar para casa a água do rio sagrado.
E era sempre ao rio que acabava por ir ter, tal como os milhares de peregrinos hindus que se deslocam aqui todos os anos, na esperança de se libertarem da samsara, o círculo interminável das reencarnações.
Inevitável, a todas as horas do dia. Ainda o nevoeiro não levantou e já os primeiros peregrinos deambulam como fantasmas pelas ghats, as escadarias que descem para a água parda do Ganges, “Ganga Ma”, a mãe purificadora que nos acolhe e limpa dos pecados mundanos. Morrer aqui é o caminho mais directo para nos fundirmos com o Universo, sem necessidade de voltar a sofrer mais vidas, e talvez por isso há muitos idosos.
Mas todos os fiéis hindus sonham em vir aqui, pelo menos uma vez. Da sua nascente, nos Himalaias, à sua chegada ao mar, no golfo de Bengala, o Ganges é um dos mais importantes rios a nível mundial, mas é, sobretudo, o mais sagrado de todos. E de todas as cidades que pontuam as suas margens, Varanasi, a cidade de Shiva, é a mais venerada.
Embrulhados em xailes de lã, os peregrinos compram barquinhos de flores com uma lamparina acesa no meio. Serão libertados na corrente fraca de Inverno e desaparecerão, a piscar, no nevoeiro, acompanhados pelas orações e gestos de vultos metidos na água até à cintura.
A cena pode ocorrer em qualquer uma das cerca de cem ghats pontuadas por templos, espalhadas por seis quilómetros, ao longo do Ganges. As abluções decorrem durante todo o dia. Imersão na água, três gotas na boca, rapar o cabelo, rezar, praticar ioga, meditar, cada um exercita a espiritualidade que procura na Cidade da Luz.
E é difícil não ficar contagiado pelas devoções fortes de quem aqui se dirige como ao último lugar do mundo – pelo menos enquanto o sol não desponta, trazendo consigo um arraial de vendedores ambulantes de recordações, barqueiros e “massagistas” demasiado insistentes.
A dez quilómetros de distância, em Sarnath, Buda pregou pela primeira vez há já quase vinte e seis séculos. Mais tarde a cidade transformou-se num importante centro hindu, arrasado pelo imperador mogol e muçulmano Aurangazeb, para renascer de vez e em força no século XIX, tornando-se, definitivamente, “A Cidade Santa” da Índia. No total, Varanasi conta já cerca de três mil anos como símbolo religioso e centro de estudos hindus, um recorde que não está ameaçado por qualquer concorrência, apesar de existirem, provavelmente, mais locais sagrados neste país do que noutro qualquer.
Sacerdotes oferecem bênçãos, pedintes dão-nos a oportunidade de sermos bondosos, despojando-nos, e algumas das ghats mostram-nos a inutilidade do corpo, com cremações contínuas e cadáveres à espera, deitados em padiolas ou riquexós. Manikarnika e Harishchandra são as mais importantes e frequentadas.
As cinzas são lançadas ao rio pela família e, a poucos metros, peregrinos banham-se com pudor – não são o fogo e a água elementos purificadores? Quanto a nós, chapinhamos por entre o colorido dos saris que secam ao sol, ao longo dos guarda-sóis de aluguer de ioguis contorcionistas, que sorriem em paz. Em Varanasi, todos os deuses nos protegem.
Varanasi, a cidade…
Já foi conhecida por Kashi e Benares, até o seu nome mais antigo ser restaurado: Varanasi vem da junção dos rios Varana e Asi, que correm para norte e sul da cidade, respectivamente. Tem um raio de cerca de cento e vinte quilómetros e, além de centro espiritual e religioso, é também um importante centro de estudos de sânscrito, onde acorrem estudantes de todo o mundo.
Se a estes juntarmos os largos milhares de peregrinos e mais de um milhão de habitantes permanentes, ficamos com uma ideia da pequena metrópole que é Varanasi – em termos portugueses, claro.
O Estado onde se encontra, o Uttar Pradesh, apesar de ser um dos mais produtivos da Índia, é uma área essencialmente agrícola e sobrepovoada. A sua população junta-se aos cerca de trezentos milhões de pessoas que dependem completamente das águas do Ganges – e não falamos agora de religião, mas da própria subsistência. Com quase dois mil e seiscentos quilómetros, este é um dos maiores rios do mundo, e o seu delta, localizado no Bangladesh, é mesmo o maior.
As ghats que dão para o Ganges, assinaladas pelo lingam (falo) de Shiva, são a atracção da cidade e, de facto, a única parte interessante, juntamente com as vielas que as antecedem. Os templos são demasiado sagrados para aceitarem não-hindus no seu interior, pelo que só podemos apreciar as fachadas.
Na época seca, é possível percorrer as ghats mais activas e procuradas, as cinco onde os peregrinos devem banhar-se por ordem: Asi, Dasaswamedh, Barnasangam, Panchganga e Manikarnika. Mas durante a monção as águas sobem de tal maneira que as escadarias quase desaparecem. Curioso é referir que, apesar dos poluentes humanos e industriais, o rio tem uma fantástica capacidade de regeneração e as suas águas não estão tão sujas como seria de esperar. Respeitosos, os indianos preferem dizer que o rio está “doente”, em vez de poluído.
Com o desenvolver do turismo, apareceram os esquemas para fazer dinheiro fácil e que, infelizmente, trazem alguma má fama e começam a vir associados ao nome da cidade: “fábricas” de seda que afinal são lojas, limpadores de ouvidos (!) insistentes, barqueiros disfarçados de peregrinos que só querem oferecer um chá, vendedores ambulantes de tudo, incluindo haxixe e drogas duras.
Às vezes o misticismo pode desaparecer como por encanto, se não nos soubermos afastar com discrição destes “peregrinos” do rei Midas. Mas uma madrugada pelas ruelas antigas e escadarias do Ganges valem tudo isto, limpam a memória, os pecados, e dão-nos a paz necessária para mais uns dias.
…e a luz
Para os hindus não há profetas ou livros sagrados, como a Bíblia ou o Corão. Os religiosos são pessoas que praticam o mais profundo afastamento das coisas terrenas, meditando em solidão para encontrar dentro de si o caminho da união com o divino.
O hinduísmo possui uma forte componente de organização social, ao dividir os indivíduos por castas, um extenso e colorido panteão de deuses, e uma profunda vertente filosófica que tem evoluído desde o seu aparecimento, sobretudo entre 2500 e 600 a.C.
Alguns dos conceitos-chave são os de karma, que é o efeito das nossas acções passadas e presentes, ahimsa, a não-violência, e samsara, o ciclo de reencarnações a que estamos sujeitos até atingirmos a libertação através da samadhi, a meditação. Brama, Shiva e Vixnu são a sagrada trindade hinduísta, e Varanasi é a cidade onde habita Shiva. Aqui, o seu lingam de luz sai da terra e alcança os céus; Kashi, nome pelo qual foi conhecida, significa mesmo “Cidade de Luz”.
O sagrado Rio Ganges
Apesar de muitos hindus afirmarem que só há um Deus e que todos os outros nomes se referem apenas a manifestações do seu poder, qualquer povo gosta de rezar aos seus santos ou deuses particulares, esperando que intercedam junto de um Deus maior.
E em Varanasi, o rio e o Deus têm uma história inseparável. Originariamente o rio corria nos céus, e o sol queimava tudo na terra. Os ioguis (religiosos) e o próprio rei Baghirat pediam ao deus Brama que fizesse a Ganga celestial descer à terra. Shiva, impressionado com os esforços ascéticos e a pureza dos homens que imploravam, resolveu aceder ao pedido.
Para evitar a fúria de Ganga – também conhecida por Kali – e para evitar a violência e a destruição das águas, Shiva usou os seus longos cabelos para que estas escorressem pacificamente, dos Himalaias até à planície.
O Ganges é, portanto, um rio especialmente purificador, e “Jai Ganga Maiki”, “glória à nossa mãe Ganges”, é uma prece corrente. Morrer aqui ou, pelo menos, ser aqui cremado e as cinzas atiradas à água, é garantia de purificação definitiva. Mesmo o crematório eléctrico que foi instalado numa das ghats não é tão popular como as piras de madeira que ardem quase continuamente, ateadas por um membro próximo da família.
Sacerdotes oficiam os ritos e as ofertas que auspiciam a libertação, purificando mortos e vivos. Cinzas, flores e cabelos são ofertas comuns à Mãe-Ganges, consorte de Shiva. Todos têm a noção de que em poucos lugares do mundo conseguiremos estar tão perto dos deuses.
Guia de viagens a Varanasi
Este é um guia prático para viagens a Varanasi, na Índia, com informações sobre a melhor época para visitar, como chegar, pontos turísticos, os melhores hotéis e sugestões de actividades na região.
Quando ir
De preferência no Inverno, para poder ver as ghats em pleno funcionamento e passear entre elas; o Verão é a época das monções e o rio cobre as escadarias. Atenção: de Inverno os dias são quentes, mas as noites e madrugadas são francamente frias.
Como chegar a Varanasi
Voar para Nova Deli. Aí, pode instalar-se na zona de Paharganj, bem perto da estação principal de comboios. Provavelmente terá que esperar alguns dias para conseguir lugar marcado até Varanasi, uma vez que o comboio é muito popular para grandes deslocações. Vá em segunda classe se já estiver habituado à Índia: caos e amizades garantidas, mas cuidado com as bagagens – veja os cuidados dos indianos e faça como eles. A viagem dura cerca de 15 horas, e há serviço de refeições. Há também ligações aéreas diárias entre Nova Deli e Varanasi com a Indian Airlines.
Onde ficar
Recuse qualquer hotel recomendado por um riquexó. Se lhe disserem que o hotel para onde quer ir “fechou”, ou foi inundado pelo Ganges, é sinal de que o patrão não dá comissão a quem o levar lá – retirada do seu pagamento, claro. Para os mochileiros, recomendamos uma das mais populares pensões na zona da cidade antiga, a Vishnu Guest House. Para quem gosta de mais conforto, há hotéis médios não longe da estação ferroviária, como o Hotel Ajaya.
Gastronomia indiana
Para os vegetarianos, a Índia é o paraíso, e as cidades santas ainda mais. A maior parte das pensões à beira-rio oferece thalis vegetarianos (o thali é uma popular refeição indiana, composta de arroz, pão – chapati – e alguns caris variados), baratos e saborosos. Um dos melhores restaurantes da área é o Keshari, num beco da rua Dasaswamedh Ghat.
Informações úteis
É necessário um visto, a pedir na Embaixada da Índia, em Lisboa. O hindi é a língua oficial, mas o inglês está amplamente divulgado, e é mesmo a língua franca entre os Estados deste imenso subcontinente. O euro tem um câmbio aproximado de 57 rupias indianas. Por respeito e também porque é proibido, não tente fotografar as cremações em curso; por muito “exótico” que seja, não se esqueça de que um funeral é um ritual doloroso. Vá preparado (em espírito e com medicação) para enfrentar conceitos de higiene diferentes dos europeus, sobretudo nos restaurantes.
Seguro de viagem
A IATI Seguros tem um excelente seguro de viagem, que cobre COVID-19, não tem limite de idade e permite seguros multiviagem (incluindo viagens de longa duração) para qualquer destino do mundo. Para mim, são atualmente os melhores e mais completos seguros de viagem do mercado. Eu recomendo o IATI Estrela, que é o seguro que costumo fazer nas minhas viagens.