Descanso da viagem na pacata povoação de Yangshuo, um recanto deveras ocidentalizado em plena China, numa semana animada por pedaladas, algumas cervejas e arrojadas revelações de índole sexual.
Yangshuo é um lugar especial, dizem-me. Parece que tem algo único em toda a China: “podes descansar da própria China”, acrescentam. Curiosa afirmação. Na verdade, a maioria dos viajantes acaba por prolongar a sua estadia nesta pequena localidade da província de Guangxí. Como que atraídos pela força invisível de um poderoso íman. Decido verificar com os meus próprios sentidos. Um pequeno desvio de vinte e cinco horas de comboio.
Mas chego a Yangshuo numa das piores alturas possíveis. Toda a China está em circulação, de férias, num movimento colectivo de milhões de pessoas por ocasião de um importante feriado nacional. E acontece que Yangshuo é um dos mais populares destinos de férias da actualidade. Azar. Tenho todo o tempo do mundo e acertei em cheio na pior semana para aqui estar. Os preços do alojamento triplicaram, as pessoas acotovelam-se nas estreitas ruas da povoação, os operadores turísticos não têm mãos a medir. É o caos, num lugar já de si acostumado a ter mais mochileiros do que qualquer outro no país.
E tanto assim é que, à rua central de Yangshuo, as autoridades mudaram o nome para West Street. Dezenas de pousadas e hotéis, pequenos-almoços sem noodles na ementa, inúmeros restaurantes servindo comida ocidental, bares com cerveja gelada e muita animação, gente a falar em inglês. Um paraíso para quem pretende descansar de viajar por uns dias. É o meu caso. A China exige muito do viajante. Sabe bem repousar num lugar amigável. E, mesmo numa semana como esta, é possível fugir do bulício momentâneo de Yangshuo.
Alugo uma bicicleta e sigo para os arredores, percorrendo caminhos de terra batida que seguem, de aldeia em aldeia, os contornos rurais das margens do rio Li Jiang. Tudo é verde, muito verde, extensos arrozais tendo espantosas formações rochosas que se elevam do solo, imponentes, como pano de fundo. Elas são, aliás, a imagem de marca da região. Umas quantas pedaladas adiante chego a um local onde é necessário atravessar o rio para a outra margem. Negoceio o preço e entro num pequeno barco que se encarrega de fazer a travessia.
No rio, pescadores que usam aves em vez de redes preparam uma noite de pesca. Os pássaros têm a garganta atada com um fio que os impede de engolir os peixes que capturam. É uma técnica usada desde há inúmeras gerações pelas comunidades da região. Haveria de assistir, dias depois, a uma dessas pescarias e comprovar que o instinto piscatório das aves é algo extraordinário.
Volto à povoação e sento-me num dos restaurantes da West Street. Peço uma cerveja, gelada quanto baste, e aguardo pelo jantar. E é então que algo inusitado acontece. Uma face conhecida – chamemos-lhe Cristina, “nome inglês” adoptado pela própria – senta-se na minha mesa. Tinha-a conhecido ao solicitar, dias antes, uma qualquer informação e, desde logo, esta jovem chinesa se havia mostrado muito afável e mais desinibida do que o usual no contacto com um estrangeiro como eu.
Entre uma e outra garfada de arroz, falamos de tudo um pouco. Sobre Yangshuo, sobre Portugal, sobre trabalho e viagens e, surpresa das surpresas, sobre paixões e sexo – tema tabu numa sociedade onde os jovens primeiro estudam e só depois têm permissão para namorar. Digo que sou casado, ela afirma que não tem namorado.
– “Terminámos há quatro meses. Mas ele já arranjou outra namorada”, acrescenta.
– “E tu, com tantos homens estrangeiros aqui… hum…”, atiço a conversa.
– “Não, não posso” – diz e pára por um instante, pensativa, como que avaliando a situação. E acrescenta, de seguida: “Vou-te contar uma coisa”.
Aguardo expectante o desenrolar do diálogo. Nunca uma mulher chinesa havia antes quebrado o tabu.
– “Para os homens chineses a virgindade da mulher é algo muito importante. Agora, se eu quiser casar com outro homem, deverei ser virgem”. Ouço atentamente, em silêncio. “E a minha mãe implorou que o fizesse. Por isso, acedi. E assim fiz uma operação para ficar virgem novamente”, termina, com um sorriso um tanto quanto embaraçado.
Não digo nada. Sinto que me encontro perante um dos autênticos choques culturais com que, de tempos a tempos, um viajante se depara. Peço outra cerveja e sigo para um bar frequentado por ocidentais.
Esta é a capa do livro «Alma de Viajante», que contém as crónicas de uma viagem com 14 meses de duração - a maioria das quais publicada no suplemento Fugas do jornal Público. É uma obra de 208 páginas em papel couché, que conta com um design gráfico elegante e atrativo, e uma seleção de belíssimas fotografias tiradas durante a volta ao mundo. O livro está esgotado nas livrarias, mas eu ofereço-o em formato ebook, gratuitamente, a todos os subscritores da newsletter.
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