No sudeste da Turquia, de maioria curda, existem aldeias onde as ancestrais tradições do povo curdo se mantêm em grande medida intactas. Como na minúscula Yuvacali, a meio caminho entre Sanliurfa e Diyarbakir, onde Halil e Pero Salva me receberam na sua modesta habitação e me fizeram sentir parte da família.
Pero Salva é uma mulher incrível. Todas as manhãs faz pão para a família, trata da casa e dos filhos, cozinha e lava a roupa, ordenha as ovelhas, aprimora o queijo. Trabalha sem descanso. Quando a conheci, estava angustiada. O velho frigorífico, prenda de casamento há quase vinte anos, acabara de perecer. Ainda assim, nunca lhe vi na face outra coisa que sorrisos e boa-disposição. Halil Salva é o seu marido. Trabalha quando há trabalho na aldeia – como na época da colheita das lentilhas -, e sazonalmente em restaurantes da cidade de Marmaris, durante a época alta na costa mediterrânea. Vivem na pequena aldeia curda de Yuvacali (tão pequena que há apenas três apelidos na aldeia), não muito longe de Hilvan, a meio caminho entre as cidades de Sanliurfa e Diyarbakir, e foram a minha família por alguns dias.
A sua casa é pequena. Dorme-se nos tapetes da sala, onde também se come e vê televisão. Ou então – e preferencialmente – no terraço ou nos tath (plataformas de metal a cerca de um metro de altura), para fugir ao calor do Curdistão turco. O lugarejo é praticamente auto-suficiente. Cultivam tudo o que precisam, têm vacas, ovelhas e galinhas, de onde obtêm leite, queijo, ovos e carne. O resto dos bens que necessitam compram em Hilvan, onde vão semanalmente, ou então algum vendedor se encarrega de os trazer à aldeia. Foi o que aconteceu no caso do novo frigorífico Hoover que, dois dias depois, retirou a angústia do coração de Pero e manteve a carne e os vegetais comestíveis.
Yuvacali não é um lugar bonito. Há casas abandonadas, muitas delas em ruínas, e lixo nas ruas. Mas tem outros encantos. Sempre que me punha a caminhar pelas ruas de terra da aldeia, a garotada circundava-me. Queriam falar, queriam meter-se comigo, queriam brincadeira. E fotos. Depois de os fotografar a todos várias vezes, viraram-se para os aldeões. Sentados junto à estátua de Ataturk que faz de praceta central, gritavam “photo, photo”, excitados, sempre que alguém passava. E as pessoas desatavam-se a rir. Ninguém reagia mal perante a inocência das crianças. Era como se fossem elas a fotografar, não o forasteiro homem de máquina em punho. Aproveitei a oportunidade. A eles lhes devo belas imagens de jovens mulheres curdas, espontâneas e sorridentes. Uma raridade para um viajante masculino no Curdistão profundo.
Certo dia, Halil quis mostrar-me os pastores nómadas da região. Acordámos às cinco da manhã com a claridade do alvorecer no terraço, caminhámos até um promontório e aguardámos. Aos poucos, dois pastores foram deixando de ser formiguinhas na pradaria até nos cumprimentarem com um sólido aperto de mão. Traziam consigo um enorme rebanho de ovelhas. Às suas costas, um pesadíssimo capote de lã de ovelha com um forro plástico com que enfrentavam o frio e a chuva das noites ao relento. As suas tendas quadrangulares ficavam nas proximidades. Fomos até lá.
Passámos bem perto delas, sem nunca abrandar o ritmo. Uma mulher de idade ainda dormitava num tath em frente a duas tendas colocadas lado a lado, outra cuidava de um petiz já no chão. Halil prosseguiu quase sem olhar e nada disse. Percebi imediatamente: não estava qualquer homem da família nas proximidades; não nos era permitido ali ficar. Em Yuvacali, os costumes são para cumprir de forma rígida.
A primeira coisa que tive de imediato interiorizar, assim que cheguei a casa da família Salva, foi, aliás, que homens e mulheres se sentam sempre em lados opostos da sala, da mesa ou do que for. E que não é também admissível que um homem e uma mulher não casados estejam sozinhos numa divisória da casa, pelo que nunca podia entrar na cozinha se Pero lá estivesse sozinha a cozinhar. Em Yuvacali, como na maior parte do Curdistão, a honra da família mancha-se por menos de nada. Basta um boato, uma insinuação, e o desfecho pode ser trágico. Até porque o conceito de divórcio simplesmente não existe. O casamento, esse sim, é obrigatório.
Os rapazes de uma família casam por ordem de idade, geralmente depois do serviço militar, quando têm 21 ou 22 anos. Regra geral, são os pais que procuram uma potencial noiva na região. Uma vez encontrada, um grupo de anciães da aldeia visita a família dela para dar o seu aval. Salvo casos em que a família impõe de forma inapelável a sua vontade, os potenciais noivos podem aceitar ou recusar o parceiro.
Uma vez aceite, a família da noiva prepara uma lista de bens que compõem o dote, e que normalmente inclui muito ouro, jóias e dinheiro, e os electrodomésticos indispensáveis numa futura casa. O noivo só pode casar quando possuir todos os bens do dote; a mulher tem como principal obrigação manter-se virgem.
No primeiro dia do casamento, os homens juntam-se em casa da família do noivo num ambiente de festa, com batuques e muita animação; as mulheres encontram-se na casa da noiva em ambiente de pesar, chorando baba e ranho pelo facto da filha estar prestes a deixar de fazer parte da família. Mudar-se-á definitivamente. E tudo o que aprendeu deixará de ter utilidade na sua casa. Por isso, quando perguntam a Pero quantos filhos tem, a resposta é sempre “dois”, apesar de ter uma terceira criança do sexo feminino. Como ficar solteiro é inadmissível em Yuvacali, a petiz mais tarde ou mais cedo acabará por deixar a família. Irá viver para casa dos pais do seu futuro noivo, até conseguirem ter a sua própria casa. E isso pode demorar 10 anos. O tempo que o frigorífico novo exigido no dote terá que esperar até poder ser utilizado.
O projecto Cairo - Teerão foi uma viagem terrestre pelo Médio Oriente, com a duração de três meses. Teve início no Cairo, capital do Egito, e término em Teerão, capital da República Islâmica do Irão. As crónicas foram originalmente publicadas no suplemento Fugas do jornal Público.
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