O vento é um grande inimigo dos ciclistas, e isso notou-se – e de que maneira – nesta passagem, em território espanhol, desde logo no caminho que liga Saragoça a Madrid e, posteriormente, rumo a Tudela, onde pudemos finalmente descansar.
Deixámos para trás Madrid, não sem antes nos enganarmos uma série de vezes até encontrarmos a saída que, no nosso “mapa”, nos parecia tão evidente, mas que as autoridades espanholas insistem em tornar complicado, transformando as estradas municipais em autoestradas proibidas – claro está -, a bicicletas.
Mas todos insistam connosco para que as pedalássemos, inclusive a polícia que, dez quilómetros adiante da capital espanhola, nos autorizou (haveria outro caminho?) a percorrer três quilómetros de autovia, a maioria dos quais no interior de um longo túnel que passava por baixo das pistas do aeroporto de Barajas. Quando a luz finalmente apareceu ao fundo do túnel, estávamos na estrada que nos levaria a Guadalajara!
Não menos importante noutros tempos que a conhecida cidade mexicana, esta pequena cidade foi marco importante na história do comércio espanhol. No caminho que ligava Saragoça a Madrid, a passagem por Guadalajara era obrigatória, existindo ainda, atualmente, uma das portas que servia de barragem à entrada de pessoas e bens que para qualquer um dos lados se dirigisse.
A cidade tem uma série de imponentes palácios que expressam bem toda a riqueza existente em tempos nestas paragens e, assim como todos os povoados da zona de Castilla-La Mancha, Guadalajara foi motivo de disputa entre muçulmanos e católicos durante séculos, podendo ver-se nos dias de hoje, na Catedral de Santa Maria da Fonte, fortes evidências disso mesmo, com a torre da igreja que outrora foi um minarete e as portas da catedral em estilo árabe. São também de realçar os muitos azulejos existentes em toda a cidade. A noite foi passada com uma cicloturista que nos deu uma série de indicações sobre povos a visitar nas proximidades e trajectos a seguir a partir dali.
Facto é que estávamos no maior planalto espanhol. O vento soprava como nunca antes nesta viagem, o frio era cortante e as nuvens começavam a passar com mais frequência do que o costume. Fazíamos todo o trajecto a mais de 900 metros de altitude e as estradas pareciam-nos infinitas.
Era complicado pedalar. As bicicletas eram obrigadas a parar uma e outra vez para que descansássemos, para que comêssemos, para que, entre dentes, disséssemos mal de toda aquela intempérie. Pelo meio, íamos descobrindo pequenas povoações que pareciam abandonadas. Se ali existia alguém, esse alguém não passava. Parecia-nos muitas vezes estarmos a viver uma qualquer cena de um qualquer filme western, só faltava mesmo a música em tom de suspense. Não havia uma loja, um café, uma padaria. Nada! Numa das nossas paragens, e depois de termos perguntado a dois transeuntes onde poderíamos encontrar alguma loja onde comprar alguma coisa e estes nos terem convidado para um café, percebemos que, para nos alimentarmos, teríamos que fazer um desvio de seis quilómetros à nossa rota. Nas palavras dos nossos anfitriões, era desvio que “valia mesmo a pena!” – e assim foi. Mais à frente, demos por nós a virar à esquerda para Atienza, a maior descoberta até então.
Situada num pico rochoso, esta pequena aldeia que de longe se assemelha a uma construção instalada montanha acima, é de uma beleza rara! O turismo, pelo que vimos, começou a descobri-la. A aldeia encontra-se muito bem recuperada, com praças aprazíveis, igrejas várias, as fachadas das casas bem cuidadas e o castelo construído pelos árabes e posteriormente aumentado pelos reis católicos que, do seu alto, e rodeado por enormes e largas muralhas, tudo olha de cima. No topo da única torre do castelo tem-se uma vista da paisagem que parece não mais acabar, e foi por esta mesma razão que, durante séculos, Atienza foi motivo de disputa entre vários povos: a sua posição estratégica.
Como um dos Caminhos de Santiago passa pela aldeia mas são poucos os peregrinos que o percorrem, o governo local ainda não sentiu necessidade de construir um albergue para servir o caminho, visto que a cidade oferece uma série de pequenos hotéis, ficando os poucos caminhantes que atravessam a aldeia alojados no pátio fechado da Câmara local. Nós não fomos excepção e, juntamente com um viajante japonês, passámos uma noite quase perfeita, não fosse o homem ressonar como nunca antes havíamos ouvido.
Nos dias seguintes, o vento continuava e isso tirava-nos a vontade de pedalar mais do que 35 quilómetros por dia. Entre a saída de Atienza e a chegada a Tudela, pouco mudou. Pelo meio, parámos no pequeno pueblo de Viana de Duero, com uma população maioritariamente idosa e de uma simpatia ímpar que, além de nos mostrar os diferentes espaços onde poderíamos montar a tenda, nos convidou a tomar um café no teleclub, onde todas as noites se reúnem, e na vila de Ágreda, completamente estourados de cansaço, onde dormimos numa casa paroquial e onde finalmente, após três dias de intenso cheiro a suor, tomámos um bom duche.
Em Tudela quisemos descansar e pouco fazer. A cidade, habitada há séculos por muçulmanos, cristãos e judeus, conserva uma série de catedrais, praças e outros palácios que estariam bem melhor integrados se uma recuperação à cidade fosse feita, pois esta encontra-se velha e, em muitos locais, a desmoronar-se. Banhada pelo Rio Ebro, foi de lá que partimos para aquele que é um espaço único na Europa: Las Bardenas Reales, um parque natural com mais de 45.500 hectares, Património da Biosfera da UNESCO desde 2000.
Esta paisagem, com aspecto lunar, foi espaço de caçadas de antigos reis e local de refúgio de muitos bandidos conhecidos da história espanhola. A erosão provocou, ao longo dos anos, um território árido de quando em vez com elevações que nunca passam os 660 metros. É ainda espaço de cultivo e pastoreio, e a sua maior atracção é o Castillodetierra, um pico arenoso que perde todos os anos parte da sua beleza e que, segundo as previsões, deverá desaparecer totalmente no espaço de dez anos. Existe até um grupo numa rede social online que alerta para este perigo, e lembra as pessoas que deveriam tirar uma fotografia em frente ao mesmo, pois o seu fim estará próximo. Nós fizemo-lo!
De Tudela até Pamplona foram dois dias. Agora, estamos na base dos Pirenéus e começaremos a subi-los assim que daqui sairmos. De Pamplona a Roncesvalles, depois entraremos em França por Saint-Jean-Pied-de-Port, e daí para Pau. Toulouse será a próxima grande cidade onde descansaremos por três ou quatro dias. Amanhã, o frio abaixo dos zero graus espera-nos. Vamos!
O projecto Eurásia é uma viagem de bicicleta entre Portugal e Macau, com passagem pela Europa, Médio Oriente e Ásia Central e 19 meses de duração. Ao longo de todo o percurso foram publicadas crónicas com periodicidade média quinzenal.
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